Distopia americana

O atentado a Donald Trump na Pensilvânia recomenda assistir ao filme Guerra Civil, lançado no Brasil em abril e disponível no Prime Vídeo, para saber o risco que os Estados Unidos correm, diante da escalada da violência política e de divisão do país.

O filme, no qual um dos destaques é o ator brasileiro Wagner Moura, se desenvolve em uma sociedade americana futura e distópica, em meio a uma polarização política extrema. Sem que exista um sistema de pesos e contrapesos na presença de instituições fortes e de estado, o conflito armado se instala para destituir um presidente xenófobo e de extrema-direita, ao final assassinado, responsável pela erosão da democracia americana.

Mesmo com o atentado a Trump, os Estados Unidos ainda estão muito longe disto. É possível evitar o armageddon de sua democracia. Mas para tal se impõe que as instituições funcionem e que se tente baixar a temperatura da disputa política, com os americanos voltando a resolver seus conflitos políticos pelas urnas e não pelas balas. Esse foi o apelo do presidente Joe Biden, mas há sérias dúvidas se seu sábio conselho será ouvido por seus compatriotas e levará ao refluxo da escalada da violência.

Se não houver uma conjunção de esforços para trazer a disputa política para patamares civilizados, a realidade pode imitar a ficção de Guerra Civil, em um futuro não muito distante. Esse vírus se instalou na política do país desde a disputa eleitoral de 2020, quando o ex-presidente não aceitou sua derrota para Biden e pela primeira vez na história americana o Capitólio foi invadido por uma horda de fanáticos, os quais Trump chamou de “patriotas!”.

Não se pode banalizar o atentado do último domingo, tratando-o como normal em um país no qual quatro presidentes foram assassinados – Abraham Lincoln, James Abram Garfield, William McKinley e John Kennedy. Sim, os Estados Unidos têm um histórico de violência política. Ronald Reagan, quando presidente, também foi vítima de um atentado, mas sobreviveu aos tiros. Sem falar nos assassinatos de Robert Kenedy e Martin Luther King e nos atentados frustrados a Bill Clinton e George Bush.

Mas há uma diferença fundamental para os tempos atuais. Por mais traumáticos que tenham sido tais episódios, as instituições democráticas americanas não estiveram em xeque e a coesão dos americanos em torno de objetivos e propósitos comuns foi mais forte e sobreviveu às intempéries. Graças a ela, a democracia americana seguiu em frente. O país enfrentou grandes tempestades, como a Segunda Guerra Mundial, para sair delas mais forte e resiliente.

Já o atentado a Donald Trump aconteceu em uma América distópica, nas quais as instituições da principal democracia do mundo passam por um processo de corrosão. Desde a Guerra da Secessão, o risco da divisão do país nunca foi tão grande. A coesão americana em torno de uma comunhão de destino deu lugar sentimentos de medo, insegurança, de ódio e de xenofobia.

Ao tempo em que idealiza um passado, parte ponderável dos americanos sente-se ameaçada pela imigração desordenada, pela concorrência da China e, pasmem, pelo fantasma do comunismo!  Enxergam uma conspiração interna e mundial contra o “American Way Life” e seus valores.

Donald Trump capitalizou e potencializou esses sentimentos, adicionando a promessa de fazer a América a voltar a ser grande, apresentando-se como o Messias que veio ao mundo para salvar a América. Não hesita em tentar implodir a democracia americana, como o fez no 6 de janeiro de 2021. Nunca a democracia do país foi tão agredida como na tentativa do assalto ao Capitólio.

Quando indagado agora se respeitará o resultado das urnas na eleição presidencial de 5 de novembro deste ano, o ex-presidente dá a mesma resposta de 2020: “se a eleição for limpa, sim”. Não há, da parte dele, o compromisso claro e insofismável de se submeter à vontade dos americanos manifestada nas urnas, seja ela qual for.

Em condições normais de temperatura e pressão lideranças populistas e messiânicas já desempenham papel negativo para o bom funcionamento do ordenamento democrático. Em situações de crise e de esgarçamento da coesão nacional são capazes de destruir o Estado de Direito Democrático. Donald Tramp hoje corporifica esse risco fatal.

O Trump pós atentado disputará corações e mentes dos americanos vestido com o manto de mártir e, ao mesmo tempo, de herói. Assim como Bolsonaro, em 2018 do atentado do qual foi vítima, o candidato dos republicanos fará de tudo para tirar dividendos políticos do episódio da Pensilvânia para consolidar seu favoritismo. Usará à exaustão. A seu favor a imagem seu rosto ensanguentado, com punho cerrado e levantado, tendo ao fundo a bandeira dos Estados Unidos tremulando.

Trump não é a solução. É o problema. Não esperem dele uma postura de estadista, de ponderação e moderação. Está no seu DNA a incitação à divisão. Pode até modelar seu discurso na convenção dos Republicanos, mas isto terá fôlego curto.

Numa América dividida e com sua democracia sob ataque, o atentado do fim de semana alimenta teorias conspiratórias de um lado e de outro. Não há sinalização concreta de que as lições do episódio serão devidamente assimiladas, com os americanos voltando a se unir em torno de um mesmo destino e propósito.

A América que vai às urnas daqui a três meses necessitaria de uma alternativa agregadora e não conflitiva, capaz de tornar menor as crises e levar os Estados Unidos a voltar a liderar o mundo, pelo exemplo. Biden tem essas qualidades, mas suas condições físicas e mentais são um obstáculo quase intransponível para ser competitivo diante de um adversário disposto a golpes abaixo da cintura, sem pruridos e sem compromisso com os valores civilizatórios.

O sonho americano de gerações e gerações não pode ser substituído por uma sociedade distópica. Espera-se que as instituições como o Congresso Americano, a Suprema Corte e até mesmo as forças armadas, que sempre tiveram postura democrática, continuem a atuar para que o país se mantenha firme.

Mas é no 5 de novembro que os Estados Unidos efetivamente dirão se voltarão a ser a democracia mais admirada do mundo ou se pretendem mergulhar, por quatro anos, na escuridão da intolerância e do ódio.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/7/2024. 

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