Copacabana

Um especialista reservado a que tenho acesso informa que a oposição parlamentar em Brasília sentiu o balde de água fria que veio da minguada manifestação bolsonarista em Copacabana, dois domingos atrás. 

Por coincidência ou não, na semana seguinte o ministro da Fazenda nadou de braçada e até antecipou de sexta para quarta-feira a apresentação do primeiro projeto de regulamentação da reforma tributária, aprovada no ano passado e que dormitava à espera de um movimento do governo nessa direção. 

Com muito rapapé e tapinhas nas  costas, Haddad entregou pessoalmente o calhamaço ao presidente da Câmara, que é sabido apreciador desses gestos. 

O ato foi marcante. Pela primeira vez em meses, desde o último bimestre do ano passado, o governo Lula mostra as mangas da camisa arregaçadas — após várias vitórias em reformas substanciais e projetos de lei de seu interesse no Congresso durante 2023. 

Subitamente, saiu de cena por meses a fio e deu espaço para a oposição vir com sua arcaica pauta de costumes para cima do Parlamento, lascando derrotas atrás de derrotas às forças progressistas. E ainda conseguiu avançar sobre o STF com investidas no Senado na questão das drogas, sobre a qual quer impor um retrocesso que parecia impensável nas últimas décadas. 

O fiasco de Copacabana, proporcionado pelos próprios bolsonaristas, é um alívio para a parte da população jovem negra ou branca pobre usuária de cannabis em porções individuais, sem perigo algum para a saúde, a força de trabalho e a estabilidade social do país. Isto porque a vontade declarada dos higienistas bolsonaristas é de pôr na cadeia os usuários de qualquer quantidade da erva, não importa se 1 grama ou 1 quilo.

A PEC das drogas, que tramitou no Senado e agora está na Câmara, é um tiro no pé e outro na cabeça, dentro das próprias famílias bolsonaristas, onde também há jovens e onde também há usuários. A ideia, ao que parece, é fazer do Brasil uma sucursal da Indonésia, onde o uso acima de determinada quantidade é passível de pena de morte. Por aqui, seria a cadeia num sistema penitenciário superlotado e dominado pelo narcotráfico e organizações criminosas sedentas de novos militantes. 

O crime agradece. 

A PEC vai, também, na contramão do mundo, onde o combate às drogas se concentra no tráfico e na lavagem de dinheiro inerente. Poderiam ao menos dar uma olhada no que o governo conservador não histérico do Uruguai, aqui ao lado, está fazendo para dar continuidade à descriminalização, com a simples oferta de quantidades aceitáveis de cannabis para os usuários, em farmácias abastecidas pelo Estado. 

A violência proveniente do narcotráfico no Uruguai despencou. O número de usuários de cannabis se mantém estável desde que se implantou a medida, em 2013, no governo de José Mujica, 10 anos atrás. 

Não creio que as melhores cabeças governistas desconheçam o que se passa em nosso vizinho. Por que então não estudam e propõem algo semelhante aqui? A droga é um problema nacional e mundial em quase todas as famílias do planeta e exige soluções inteligentes que passam longe das cadeias. 

No Uruguai, a liberação regulamentada não causou aumento do consumo de outras drogas, como álcool, anfetaminas e cocaína — coisa que muitos temiam. A violência caiu e a segurança social aumentou. 

A droga não é um problema de polícia. O tráfico, sim. A droga é um problema de saúde pública, educação e inteligência. Aqui virou um problema de vida ou morte, por razões que todos sabemos e não temos a coragem de enfrentar. 

O refluxo da direita, agora de olho em outro hemisfério, empolgada com seu novo líder Elon Musk — aliás, um aficionado da cannabis — oferece uma boa chance de reocupar espaço ao sul do Equador e reverter bobagens do quilate da PEC das drogas, para a qual o presidente da Câmara sinalizou que vai dar o melhor destino: sentar em cima e deixar para as calendas. Mesmo com a nomeação de um relator (Ricardo Salles) empolgado em tornar o texto da PEC ainda mais retrógrado do que é. 

Mais um efeito do miserê de Copacabana. 

Nelson Merlin é jornalista aposentado e não usuário.

2/5/2024

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