“Cachorros”, o grande traidor

A história de Severino Theodoro de Mello bem poderia ser um thriller inspirado em um livro de John Le Carré. Quando ele completou 95 anos, em setembro de 2012, seus antigos companheiros do Partido Comunista Brasileiro organizaram um almoço em sua homenagem como o último participante vivo da insurreição comunista de 1935. Três anos após a homenagem, o jornalista Marcelo Godoy revelou no seu livro Casa da Vovó, vencedor do prêmio Jabuti, a face até então desconhecida de Mello.

A partir de 1974, Melinho, como era carinhosamente chamado por seus companheiros do Comitê Central, passou a trabalhar para os órgãos de repressão da ditadura. Era um infiltrado do regime militar nas fileiras do PCB.

Uma história muito bem guardada e de que absolutamente ninguém desconfiou.

Na condição de informante da ditadura, Theodoro de Mello contribuiu para mortes, prisões e desaparecimento de militantes e dirigentes comunistas. Com a revelação de Godoy, caiu a máscara do “revolucionário total”, de herói da causa comunista e de exemplo de coerência.

A espantosa revelação foi chocante para seus velhos camaradas. Muitos não acreditaram. Publicamente, questionaram a veracidade dos fatos. Marcelo Godoy, que já tinha revelado as entranhas do Doi-Codi a partir de depoimentos de policiais que participaram das ações, resolveu aprofundar suas pesquisas.

Dez anos depois, ele traz novas revelações sobre o antigo dirigente comunista e sua atividade como infiltrado no PCB, a quem chama de “o maior espião dos órgãos repressivos da ditadura”, em seu novo livro Cachorros. Esse era o termo com o qual os órgãos de repressão batizavam os militantes de esquerda que, ao serem presos, passavam a trabalhar para a ditadura. O livro também conta a história de outros cachorros, entre eles um cujas informações levariam à morte de Carlos Lamarca.

Mas Melinho é o principal protagonista do livro, pela qualidade das informações fornecidas e por ser a figura mais importante que trocou de lado.  Sem sombra de dúvidas teve, para os órgãos de repressão, uma importância muito maior do que a do Cabo Anselmo. À época, os serviços de informação do regime militar consideravam o PCB como a mais perigosa organização de esquerda, por sua capilaridade. De fato, o Partidão, em vez de aderir à luta armada como o fizeram outras organizações de esquerda, combinava a luta legal com a pressão das massas, tendo importantes relações com o MDB e com a Igreja Católica. A maneira como a ditadura foi superada, estava mais próximas das teses do PCB do que da esquerda armada, derrotada política e militarmente.

Este novo livro de Marcelo Godoy, lançado em São Paulo na semana passada, é um marco para entendermos aqueles tempos terríveis da História do Brasil. Theodoro Mello era um dirigente experimentado, temperado por quase sete anos de cárcere durante a ditadura do Estado Novo e participante da insurreição de 1935 como cabo do 29º Batalhão de Caçadores, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco.

Era um daqueles quadros de “têmpera de aço”, para usar um jargão da época em que o comunismo exercia fascínio para muitos. Na condição de quadro testado, cuidou da segurança de Luiz Carlos Prestes, quando, em 1947, o PCB teve seu registro cassado e foi para a clandestinidade. Era o responsável pelo “aparelho” no qual morava o então secretário-geral do PCB e principal liderança comunista da América Latina. Por quase uma década Prestes só tinha contato com dois dirigentes: Giocondo Dias e Theodoro de Mello.

Membro do Comitê Central, de sua Executiva e do seu Secretariado, desemprenhou inúmeras funções e tarefas. Entre elas, a de manter contato com agentes da KGB e de produzir documentos falsificados para dirigentes do Partidão. Seu estilo tranquilo fez com que seus companheiros o chamassem de “Pacato”.

Quando a repressão prendeu Mello, em 1974, o capitão Ênio Pimentel da Silveira, o “Doutor Nei” do Doi-Codi (os quadros da repressão gostavam de usar a denominação “Doutor”) percebeu que era muito precioso o tinha em suas mãos e colocou o dirigente comunista diante do dilema de colaborar com a repressão ou ser assassinado. Mello deixou a honra de lado e assumiu o codinome de “agente Vinícius” para a repressão.

É na condição de agente duplo que Theodoro Melo passou a atuar; até em Moscou, quando, juntamente com os outros dirigentes do PCB, se exilou na “Pátria-Mãe” do socialismo. Nesse período salta aos olhos a sua frieza. Continua espionando para a repressão brasileira, mandando suas mensagens a partir da Checoslováquia, então país do bloco comunista. “Pacato” sabia que caso seus companheiros descobrissem sua condição de agente duplo e estivesse ainda em Moscou seria entregue à KGB e aí o seu destino seria o que evitou quando fez o pacto com o Doutor Nei.

Ele voltou ao Brasil, durante a anistia em 1979, e continuou a atuar como infiltrado até os anos 90. Recebia uma remuneração oriunda do “ouro de Moscou” e outra do “ouro da ditadura”. Das Forças Armadas recebeu uma aposentadoria com a patente de capitão, até morrer, no anonimato, aos 105 anos de idade, em 2022. Só se ficou sabendo de sua morte recentemente, graças ao cuidado meticuloso de Marcelo Godoy. Ele pesquisou e constatou que, no ano passado, as Forças Armadas deixaram de pagar a aposentadoria de Severino Theodoro de Mello.

No livro Cachorros, Godoy trata Mello como “o maior espião da história dos serviços militares do Brasil”. Já para os remanescentes do PCB e da esquerda, o “agente Vinícius” assumiu a dimensão de um dos maiores traidores na História do Brasil, como Calabar ou Joaquim Silvério dos Reis.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 7/8/2024. 

 

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