“Brutalidade como política de segurança”

“Cada dia que o sr. Guilherme Derrite continuar à frente da Secretaria da Segurança Pública sinalizará à sociedade que, para o atual governo de São Paulo, vale tudo em nome de um suposto combate ao crime, até mesmo jogar um suspeito de uma ponte durante uma abordagem policial de rotina, matar uma criança de 4 anos durante uma suposta troca de tiros com criminosos, desferir um tiro fatal à queima-roupa em um estudante que deu um tapa no retrovisor de uma viatura ou executar outro suspeito com 11 tiros nas costas porque ele teria furtado pacotes de material de limpeza em um supermercado.”

O parágrafo acima é de editorial de O Estado de S. Paulo na quinta-feira, 5/12. No mesmo dia, e no mesmo tom, O Globo afirmou em editorial:

“A tolerância com a letalidade policial não é apenas ineficaz. É contraditória, pois os responsáveis por fazer cumprir a lei se tornam suspeitos de crimes. Além de moralmente inaceitável, uma polícia sem respeito por protocolos é a semente de milícias e da corrupção.”

O Estado de S. Paulo, O Globo, Folha de S. Paulo. Os três maiores e mais importantes jornais do país foram unânimes nas duras críticas à forma com que o atual governo de São Paulo trata a segurança pública. Diz o editorial da Folha:

“O atual governo paulista põe assim em retrocesso décadas de iniciativas para conter a letalidade policial. A sucessão de mortes arbitrárias por PMs fora de controle, no espaço de um mês, apenas coroa a escalada de violência iniciada com a nomeação de Derrite —deputado eleito pelo PL que faz da apologia à linha-dura o esteio de sua carreira política.”

Na mesma quinta-feira em que os grandes jornais criticaram com firmeza a selvageria da polícia que o governador e seu secretário de Segurança estimulam, Tarcísio de Freitas declarou que mudou de idéia sobre o uso das câmaras pelos policiais militares.

“Eu era uma pessoa que estava completamente errada nessa questão. Eu tinha uma visão equivocada, fruto da experiência pretérita que eu tinha, que não tem nada a ver com a segurança pública. Hoje, eu estou absolutamente convencido que é um instrumento de proteção da sociedade e do policial. Vamos não só manter o programa como ampliá-lo e tentar trazer o que tem de melhor em termos de tecnologia.”

As palavras de Tarcísio de Freitas, no entanto, têm o valor de uma nota rasgada de 3 guaranis paraguaios: nada. Coisa alguma. Até porque ele garantiu que o sujeito que foi expulso da Rota por matar demais continua como secretário estadual da Segurança.

Aqui vão os editoriais dos três jornalões. (Sérgio Vaz)

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Brutalidade como política de segurança

Editorial, O Estado de S. Paulo, 5/12/2024

A propósito do caso de um policial militar (PM) que jogou um suspeito de uma ponte, caso flagrado num vídeo que chocou o Brasil, o secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite, declarou: “Não vamos tolerar nenhum tipo de desvio de conduta de nenhum policial no Estado de São Paulo”. Considerando que o próprio Derrite foi afastado da Rota, a elite da Polícia Militar, por desvio de conduta (em suas próprias palavras, “porque eu matei muito ladrão”), é muito difícil acreditar na advertência do secretário. Ao contrário: ao que parece, a julgar pelos diversos casos de violência policial documentados em imagens revoltantes nos últimos dias, e também pelo aumento considerável da letalidade da PM em São Paulo, a conduta esperada dos policiais paulistas pelo secretário de Segurança talvez seja a de tratar suspeitos como bandidos – ou, pior, como seres sub-humanos, que não merecem nem direitos nem respeito e podem ser jogados de pontes como objetos inanimados.

Sendo assim, e não há razão para acreditar que não seja, é o caso de perguntar por que motivo o sr. Derrite continua à frente da Secretaria da Segurança de São Paulo. Pior: não apenas continua, como, mesmo diante da comoção causada pelas imagens de truculência policial, consta que o sr. Derrite já está sendo cogitado como candidato ao governo do Estado ou ao Senado. Ou seja, julgam, ele e seus padrinhos políticos, que a violência desenfreada da PM lhe dará votos para cargos majoritários, tendo em vista que a segurança pública é a preocupação número um de muitos eleitores, como ficou claro na recente eleição municipal.

Não parece haver motivo, portanto, para que o sr. Derrite puna maus policiais como ele um dia foi. O secretário que afetou indignação com os evidentes desvios de conduta de policiais retratados em imagens é o mesmo que celebrou o “sucesso” de operações policiais que deixaram dezenas de mortos na Baixada Santista desde o ano passado e que são alvo de diversas denúncias de abusos.

A solução, portanto, não é afastar um punhado de policiais que deram o azar de ser flagrados em imagens revoltantes. A solução é afastar o secretário de Segurança que estabeleceu a truculência como método – e que por isso mesmo não gosta das câmeras nos uniformes da polícia. Os policiais militares não podem continuar a ter como chefe e inspiração um ex-PM que se orgulha de ter matado muitos suspeitos e que considera “vergonhoso” um policial que não tenha “três ocorrências” de suspeitos mortos a tiros no currículo.

Infelizmente, contudo, o governador Tarcísio de Freitas já informou que não pretende demitir o sr. Derrite, considera que os casos em questão são apenas “exceções” e convidou a sociedade a ver os números da segurança pública sob esta administração para justificar sua decisão. De fato, conforme as mais recentes estatísticas, houve queda nos índices de homicídio, roubos e furtos, mas houve aumento de latrocínios e de lesão corporal seguida de morte. De todo modo, nenhum desses dados indica alguma tendência, nem de alta nem de baixa. Já o número de mortos pela polícia disparou: a PM matou 496 pessoas entre janeiro e setembro, o maior índice desde 2020. Há aí, portanto, um padrão – mas o próprio governador paulista já disse, em outra ocasião, que não está “nem aí” para as denúncias de abusos policiais.

Cada dia que o sr. Guilherme Derrite continuar à frente da Secretaria da Segurança Pública sinalizará à sociedade que, para o atual governo de São Paulo, vale tudo em nome de um suposto combate ao crime, até mesmo jogar um suspeito de uma ponte durante uma abordagem policial de rotina, matar uma criança de 4 anos durante uma suposta troca de tiros com criminosos, desferir um tiro fatal à queima-roupa em um estudante que deu um tapa no retrovisor de uma viatura ou executar outro suspeito com 11 tiros nas costas porque ele teria furtado pacotes de material de limpeza em um supermercado.

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Tarcísio comete seu maior erro na segurança pública

Editorial, O Globo, 5/12/2024

Questionado sobre a crise na polícia do estado, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), respondeu: “Olhe os números”. Não se poderia esperar conselho mais oportuno. Tarcísio terá muito a ganhar quando seguir o próprio conselho e reconhecer os erros da política de segurança pública que ele e seu secretário Guilherme Derrite têm adotado. De janeiro a dezembro, a PM paulista matou 712 pessoas, segundo dados do Ministério Público — o dobro do registrado no mesmo período de 2022. Diversos episódios recentes formam um quadro preocupante.

 

É preciso reconhecer que, durante mais de duas décadas, São Paulo se destacou pelos melhores índices brasileiros na segurança pública. Sucessivos governos reduziram a criminalidade, ao mesmo tempo que baixavam a letalidade policial. Estrutura de comando e profissionalismo estiveram sempre entre as metas da polícia. E a maioria dos policiais do estado continua a desempenhar trabalho competente, preocupado com a segurança dos cidadãos. Mas a chegada de Tarcísio e Derrite marcou uma inflexão.

Desde o início, Tarcísio foi ambivalente sobre o uso de câmeras corporais, equipamento que, como revelou reportagem do Fantástico, protege não apenas o cidadão de agressões, mas os próprios policiais de acusações indevidas. A influência de Derrite, presente nas forças táticas, tem sido nefasta. Quando o comando é leniente com a truculência, os policiais mais violentos se sentem livres para agir sem freios.

No mês passado, um menino de 4 anos morreu em Santos, alvejado por projétil da polícia. Um estudante de medicina desarmado foi morto após dar tapa no retrovisor de uma viatura. Um homem de 26 anos levou 11 tiros nas costas depois de furtar sabão em pó num mercado. No ano passado, a polícia promoveu na Baixada Santista a operação que resultou em mais mortos desde o massacre do Carandiru: 36, incluindo vários inocentes. No caso mais recente, um policial jogou um homem de uma ponte (ele sobreviveu). Em todos esses casos, quando fardados, as câmeras estavam desligadas. Abusos só vieram a público por denúncias, imagens de terceiros ou de vigilância.

Olhando para os números, não há relação entre a polícia matar mais e o crime diminuir. As polícias mais letais são as de Amapá e Bahia, estados com as maiores taxas de homicídios. Apesar disso, a linha dura tem sido a política de Tarcísio e Derrite. O governo paulista destaca que os homicídios caíram no estado em 2023 e continuam em queda. Mas essa é uma tendência nacional há anos. Em cidades do interior do estado, houve aumento nos assassinatos. Roubos e furtos de celular caíram menos que em Tocantins, Rondônia ou Mato Grosso. Lesões corporais dolosas e estupros não pararam de subir.

A tolerância com a letalidade policial não é apenas ineficaz. É contraditória, pois os responsáveis por fazer cumprir a lei se tornam suspeitos de crimes. Além de moralmente inaceitável, uma polícia sem respeito por protocolos é a semente de milícias e da corrupção. A suspeita de envolvimento de policiais na execução de um delator no aeroporto de Guarulhos é estarrecedora.

Forças policiais precisam estar preparadas para embates violentos contra criminosos sempre que necessário. Mas é um engano concluir que abusos ajudem. Tarcísio tem na segurança pública o ponto mais fraco de seu projeto político. Deveria acordar para isso.

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Tarcísio e instituições têm de conter selvageria policial

Editorial, Folha de S. Paulo, 5/12/2024

Antes fossem casos isolados as cenas recentes de violência injustificável da Polícia Militar de São Paulo, como tergiversa o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite. Mas não: o próprio governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que o escolheu, teve de considerar absurdo o ocorrido sob seu comando.

Melhor dizendo, falta de comando. Derrite —um ex-integrante da Rota, tropa da PM historicamente conhecida pela letalidade— estimula a convicção de impunidade entre os subordinados ao enfraquecer o uso de câmeras nas fardas dos agentes, privilegiar oficiais daquela unidade violenta e suspender o afastamento das ruas de profissionais envolvidos em mortes.

Em 3 de novembro, Gabriel da Silva Soares, 26, foi morto pelas costas. Dois dias depois, foi abatido Ryan da Silva Andrade Santos, 4. No dia 20, morreu o estudante Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, com um tiro no ventre. Nesta semana veio a cena hedionda do rapaz jogado da ponte.

“Um erro emocional”, assim qualificou a tentativa de homicídio o comandante da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas. De pouco vale anunciar apuração rigorosa quando se emite mensagem amenizadora como essa; a tropa entenderá que não foi tão grave.

Por essa via jamais se lancetará o tumor à vista de todos: a PM exibe atitudes de desprezo pela vida e inacreditável falta de preparo. Para corrigir a deformação ética e técnica da corporação urge desarticular, no poder público e na sociedade, a noção falaciosa de que se combate o crime dando carta branca para soldados alvejarem, espancarem ou torturarem quem bem entenderem.

O exemplo precisa vir de cima. Se Tarcísio ora repudia a violência pontual, cumpre recordar que não deu as devidas mostras de preocupação ante denúncias de violações de direitos humanos na Operação Verão (56 mortes de civis), neste ano, precedida no semestre anterior pela Operação Escudo (36 mortes).

A lógica truculenta fica evidente na tentativa de Derrite de justificar-se com estatísticas como a redução de 2,9% em homicídios dolosos, para 2.065 de janeiro a outubro (tendência de queda que precede sua gestão). Argumento deplorável, quando se sabe que as mortes por policiais em serviço ou não subiram 55% no ano até setembro, para 580 casos.

Há que pôr cobro à mortandade. Obrigar PMs a manter ligadas câmeras nas fardas é o mínimo. Contudo, sem maior empenho da Corregedoria, do Ministério Público e da Justiça em apurar e punir excessos, a marcha da selvageria seguirá desimpedida.

6/12/2024

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