Antirrepublicano, antiético – e pouco inteligente

“Ironia e deboche são incompatíveis com uma comunicação pública, impessoal, republicana. Fazer referências, mesmo indiretas, a um adversário é converter canais governamentais em palanques digitais”, diz, com carradas de razão, em editorial, O Estado de S. Paulo desta quarta-feira, 31/1.

E vai no cerno da questão: “Na sua obsessão para atingir o bolsonarismo, o governo recorre às mesmas práticas que dizia condenar na gestão anterior. No fim das contas, o post só reafirma a ideia de que, para o lulopetismo, a máquina do Estado deve estar a serviço não dos cidadãos, mas do partido.”

O título de editorial de O Globo resume com perfeição: “É indevido governo ironizar adversário por ação da PF”. O editorial crava:

“Com esse tipo de estratégia de comunicação, o governo erra duplamente. Primeiro, porque o anúncio oportunista prejudica as investigações da PF, já que o uso político reforça a acusação da oposição de que a operação não passa de perseguição a Bolsonaro e a Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin, pré-candidato à Prefeitura do Rio. Segundo, porque o governo faz piada com um assunto sério, a escalada dos casos de dengue, para tripudiar sobre adversários políticos. Em vez de produzir ironias, deveria preocupar-se em desenvolver campanhas para conscientizar a população e evitar mortes.”

Também no Globo, Vera Magalhães vai ao ponto em seu artigo:

“O episódio em que a Secom de Lula usou suas redes sociais para lacrar em cima da operação que teve Carlos Bolsonaro como alvo mostra que os expedientes usados pelo adversário foram em parte absorvidos pela nova gestão. Às favas o que diz a Constituição quanto aos princípios que devem nortear a administração e a comunicação públicas. Não bastasse ser antirrepublicano, o uso partidário das redes de um órgão de Estado dessa forma ainda corrobora de modo pouco inteligente o discurso do clã Bolsonaro de que é vítima de perseguição. O vício na polarização é de tal natureza que não há ninguém para apontar, se não o desvio de finalidade de uma ferramenta pública, ao menos a pouca inteligência da ‘sacada’.

Fazia algum tempo que eu não postava aqui uma compilação de textos sobre política. Pois aqui vão as íntegras dos editoriais e do artigo. (Sérgio Vaz)

***

Polarização como vício

Por Vera Magalhães, O Globo, 31/1/2024

Não bastasse o mal que faz ao debate público, o desgaste que causa às instituições de Estado e o risco que representa para a própria democracia, a polarização política virou uma muleta que os dois lados que dela se alimentam passaram a usar para justificar todas as suas mazelas e exigir do público complacência com as inconsistências de seus projetos de governo.

O clã Bolsonaro — investigado em múltiplas frentes por suspeitas que vão de aparelhamento de Estado e tentativa de minar o processo eleitoral, por parte do patriarca e ex-presidente, a traficâncias várias por que são investigados os filhos — coloca tudo no saco da perseguição política do PT, do Judiciário e da imprensa.

Mais: essa sanha incontrolável não estaria voltada apenas à família, mas seria destinada a abater toda a direita e o pensamento conservador, incluídos aí cristãos, por meio de uma cruzada religiosa.

Trata-se de uma tática tão surrada quanto ainda eficaz de criar uma cortina de fumaça para fatos de extrema gravidade. A parcela do público que reza segundo a cartilha do bolsonarismo compra de forma acrítica essa explicação, que não se sustenta de pé e funciona como elixir para tudo, de Abin paralela a joias ofertadas por um país ao governo brasileiras e vendidas sorrateiramente.

Qual seria o antídoto para evitar que esse expediente diversionista continuasse vicejando? Que o outro lado da disputa política aposentasse as práticas e restabelecesse no trato da política e da coisa pública parâmetros mais impessoais e racionais de atuação. Mas nem sempre tem sido assim.

O episódio em que a Secom de Lula usou suas redes sociais para lacrar em cima da operação que teve Carlos Bolsonaro como alvo mostra que os expedientes usados pelo adversário foram em parte absorvidos pela nova gestão. Às favas o que diz a Constituição quanto aos princípios que devem nortear a administração e a comunicação públicas.

Não bastasse ser antirrepublicano, o uso partidário das redes de um órgão de Estado dessa forma ainda corrobora de modo pouco inteligente o discurso do clã Bolsonaro de que é vítima de perseguição. O vício na polarização é de tal natureza que não há ninguém para apontar, se não o desvio de finalidade de uma ferramenta pública, ao menos a pouca inteligência da “sacada”.

As declarações recentes de Lula também mostram um presidente totalmente capturado pela contraposição com o bolsonarismo, como se apenas isso pudesse ser um projeto de governo capaz de assegurar sua reeleição daqui a três anos. A volta por cima do trumpismo, a vitória de Javier Milei na Argentina e outras rebordosas de países igualmente mergulhados num embate entre antípodas políticos deveriam mostrar o risco de não quebrar esse mal.

O presidente foi aconselhado, ainda na aurora de seu terceiro mandato, a não incorrer na armadilha de trazer o “coiso”, como seus ministros se referiam a Bolsonaro, à cena a cada declaração. Um ano depois, segue fazendo isso e tropeçando em cada casca de banana que o antecessor coloca em seu caminho, como a reação a suas declarações mais recentes, depois de uma live marcada justamente para medir forças num terreno — as redes sociais — onde a polarização redutora é fermentada.

Lula deveria estar cobrando soluções de seus ministérios para nós concretos que podem macular sua gestão, e não usando uma conferência sobre educação para dizer que “vai ter polarização” e que ele acha “bom que tenha” nas eleições municipais. O resultado é abrir o flanco para a acusação de que a educação é palco de uma guerra ideológica, exatamente como Bolsonaro fez, a um preço altíssimo para o país.

Ao aceitar que a eleição de 2024 será um repeteco da de 2022, Lula contribui para manter Bolsonaro forte até 2026. E anabolizado pelo discurso de que as graves acusações que pesam contra ele e seu governo são apenas e tão somente vingança política.

***

Deboche antirrepublicano

Editorial, O Estado de S. Paulo, 31/1/2024

A Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) achou adequado debochar do ex-presidente Jair Bolsonaro usando, para isso, uma campanha de utilidade pública. O caso diz respeito à batida da Polícia Federal numa das casas da família Bolsonaro na investigação sobre o suposto uso da Abin pelo ex-presidente. No momento em que as redes sociais se mobilizaram para comentar o episódio, o governo petista aproveitou a publicação de um post de campanha contra a dengue para tripudiar das agruras da família Bolsonaro. Além do cinismo evidente, trata-se de atitude antirrepublicana, deplorável por definição.

O post mostrava a imagem de um homem batendo à porta com as palavras “toc, toc, toc” e o enunciado: “Quando os agentes comunitários de saúde baterem à sua porta, não tenha medo, apenas receba-os”. A onomatopeia foi previsivelmente interpretada como uma referência a um discurso da então deputada Joice Hasselmann, em 2022, sobre a iminência de uma possível operação contra Bolsonaro.

A nomenklatura lulopetista poderia argumentar tratar-se de uma mera coincidência – não fosse o histórico de artimanhas produzidas pelos criativos instalados no Palácio do Planalto, algumas das quais repletas de ironia, zombaria e referências veladas à família Bolsonaro e adversários. Quando Bolsonaro ficou inelegível, por exemplo, o perfil oficial do governo, a título de festejar a redução do preço da gasolina, exclamou “grande dia” – em referência nada sutil à frase que o ex-presidente costumava usar para comemorar notícias favoráveis ao governo e reveses de adversários. Em outra campanha, destinada a alertar a população a declarar o Imposto de Renda, os redatores lulopetistas trouxeram uma pergunta: “E aí, tudo joia?”. O post foi publicado durante a investigação sobre as joias recebidas por Bolsonaro da Arábia Saudita.

Se essas brincadeiras no perfil oficial do governo já causam espanto, mais espantoso ainda é o próprio ministro Paulo Pimenta, da Secom, jactar-se de que se trata de método perfeitamente válido. Feito um aluno orgulhoso do que acabou de aprender, disse: “Difícil para quem raciocina em uma linguagem analógica tradicional entender o papel dos algoritmos nas ‘janelas de oportunidades e fluxos’ que a comunicação digital precisa considerar. (…) É como se tivesse um trem em alta velocidade passando. Se eu ficar na frente sou atropelado. Se embarco junto, viajo na velocidade do trem e levo junto a minha mensagem. A mensagem principal é a dengue, o trem é a pauta do dia”. Mais claro a respeito de seus verdadeiros propósitos, impossível.

Ironia e deboche são incompatíveis com uma comunicação pública, impessoal, republicana. Fazer referências, mesmo indiretas, a um adversário é converter canais governamentais em palanques digitais. Na sua obsessão para atingir o bolsonarismo, o governo recorre às mesmas práticas que dizia condenar na gestão anterior. No fim das contas, o post só reafirma a ideia de que, para o lulopetismo, a máquina do Estado deve estar a serviço não dos cidadãos, mas do partido.

***

É indevido governo ironizar adversário por ação da PF

Editorial, O Globo, 31/1/2024

É legítima e necessária a operação da Polícia Federal (PF) que investiga a suspeita de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tenha montado um esquema durante o governo Jair Bolsonaro para monitorar clandestinamente parlamentares, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e adversários políticos do então presidente. Mas o governo Luiz Inácio Lula da Silva erra ao usar, de forma dissimulada, canais oficiais de comunicação para tirar proveito político dela.

A conta oficial do governo numa rede social ironizou a ação contra o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), um dos alvos da operação da PF na segunda-feira. Depois de um irônico “toc, toc, toc”, o perfil oficial escreveu: “Quando os agentes comunitários de saúde baterem à sua porta, não tenha medo, apenas receba-os”. Embora falasse de dengue, a indireta era evidente. A PF estava nas ruas batendo na porta dos Bolsonaros para cumprir mandados de busca e apreensão. O “toc, toc, toc” fazia referência velada a um discurso da ex-deputada federal Joice Hasselmann, antiga aliada que se transformou em desafeto do clã Bolsonaro. Em 2022, ela cogitou na Câmara uma possível operação contra Bolsonaro com as seguintes palavras: “Seis horas da manhã, toc, toc, toc, três batidinhas na porta. Aí quem está do lado de dentro pergunta: ‘Quem é?’. A resposta:‘É a Polícia Federal’.”

O próprio ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Paulo Pimenta, reconheceu em postagem que a campanha tenta aproveitar “as janelas de oportunidades e fluxos que a comunicação digital precisa considerar”. “É como se tivesse um trem em alta velocidade passando. Se eu ficar na frente sou atropelado. Se eu embarco junto, viajo na velocidade do trem e levo a minha mensagem. A mensagem principal é a dengue, o trem é a pauta do dia”, escreveu.

O expediente da campanha dissimulada já fora usado em março do ano passado, quando uma postagem da Secom convocando para a declaração do Imposto de Renda perguntava: “E aí, tudo joia?”, alusão ao caso dos presentes recebidos por Bolsonaro, que suscitaram outra operação da PF.

Com esse tipo de estratégia de comunicação, o governo erra duplamente. Primeiro, porque o anúncio oportunista prejudica as investigações da PF, já que o uso político reforça a acusação da oposição de que a operação não passa de perseguição a Bolsonaro e a Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin, pré-candidato à Prefeitura do Rio. Segundo, porque o governo faz piada com um assunto sério, a escalada dos casos de dengue, para tripudiar sobre adversários políticos. Em vez de produzir ironias, deveria preocupar-se em desenvolver campanhas para conscientizar a população e evitar mortes.

As suspeitas sobre atividades de uma “Abin paralela” espionando adversários do governo são graves e precisam ser apuradas em toda a extensão. Para que as investigações sejam bem-sucedidas, é fundamental agir com isenção e transparência, sem revanchismo. O governo ajudaria se ficasse calado e deixasse a PF trabalhar em paz.

31/1/2024

 

Um comentário para “Antirrepublicano, antiético – e pouco inteligente”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *