Quando Fernando Henrique Cardoso e Jacques Chirac, então presidente da França, anunciaram no Rio de Janeiro, em 1999, o início das negociações para o acordo Mercosul-União Européia, o mundo era inteiramente diferente dos dias atuais. A globalização da economia estava em marcha ascendente, as cadeias produtivas globais estavam em formação, a China não era uma ameaça à hegemonia econômica dos Estados Unidos, não havia a possibilidade de uma nova guerra mundial e a democracia se afirmava como grande valor vitorioso ao final do século 20. A guerra fria, por sua vez, era coisa do passado.
Naquele mundo, era inimaginável que em pouco mais de duas décadas a Europa seria abalada por uma nova guerra no continente, a da Ucrânia, e viveríamos outra guerra fria; tampouco estava no horizonte a interrupção da livre circulação das mercadorias e das pessoas por uma onda protecionista e xenófoba.
Quem poderia supor que 25 anos depois, a principal nação do mundo, berço da democracia moderna e símbolo do liberalismo econômico, viveria uma recessão democrática e seu novo presidente, Donald Trump, seria o maior impulsionador da guerra comercial e da desglobalização?
As mudanças econômicas e geopolíticas – a ascensão da China como maior potência comercial do mundo e a guerra comercial acenada por Trump – deram um sentido de urgência à assinatura do acordo Mercosul-União Européia, após mais de duas décadas de sucessivas negociações. Contribuíram ainda para a concretização do acordo o risco de, no futuro próximo, a extrema direita chegar ao poder em vários países do velho continente. Dado o seu discurso antiglobalização, anti-multilateralismo e fortemente protecionista, isso se tornaria uma barreira praticamente incontornável para a concretização formal do acordo. A União Européia optou por se antecipar a essa hipótese.
Também os países do Mercosul – em especial o Brasil, sua principal potência econômica – serão impactados pelas medidas anunciadas por Trump. O protecionismo do novo presidente americano pode nos empurrar ainda mais na direção de Xi Jinping, nos tornando mais dependentes do mercado chinês. Em sua recente viagem ao Brasil, o presidente da China tentou convencer Lula a aderir à Nova Rota da Seda, ambiciosa iniciativa pela qual a China vem construindo sua hegemonia geopolítica, com a adesão de 150 países.
Na América do Sul, apenas Brasil, Colômbia e Paraguai, este por não ter relações diplomáticas com a China, não aderiram à Rota da Seda. Lula teve o bom senso de resistir aos encantos da proposta de Xi Jinping. Caso nos atrelássemos à estratégia geopolítica da China, estreitaríamos nosso acesso aos outros dois grandes mercados mundiais – o dos Estados Unidos e o da União Européia.
Dado o peso do Brasil no continente, o acordo firmado entre a União Europeia e o Mercosul contribui ainda mais para o nosso país exercer um papel de liderança. Na região, somos o país com a economia mais diversificada, com potencial econômico e ambiental substantivo. Outra vantagem comparativa obtida pelo estreitamento dos laços econômicos entre os dois blocos é a maior aproximação com o mundo ocidental e democrático, ao qual pertencemos e cujos valores nos identificamos.
Em tempos de desglobalização e da tendência de fechamento das economias, o multilateralismo foi a melhor resposta que poderíamos dar. O Brasil se beneficiará enormemente por trilhar esse caminho. A União Européia é nosso segundo maior parceiro comercial. A União dos dois blocos representará um mercado conjunto de U$ 22 trilhões e de 700 milhões de consumidores, superior, portanto, ao dos Estados Unidos, nosso terceiro parceiro comercial.
Ou seja, estaremos mais bem posicionados para estabelecer negociações com as duas principais potências mundiais, do ponto de vista econômico, a China de Xi Jinping e os Estados Unidos de Donald Trump. O pragmatismo responsável recomenda não orbitar em torno de nenhum dos dois pólos, mas a ter boas relações com os dois, observando sempre os interesses do Brasil. Assim, o acordo Mercosul-União Européia representa uma terceira via para não ficarmos prisioneiros da polarização entre as duas maiores potências do mundo.
A diversificação de parceiros tem um sentido estratégico na diplomacia brasileira. No caso específico, o acordo contribuirá para a atração de novos investimentos do bloco europeu no Brasil, atualmente responsável por 50% dos investimentos externos diretos em nosso país. Abre ainda a possibilidade da integração, de forma competitiva, com cadeias produtivas européias. Destacam-se ganhos imateriais inestimáveis, como o compromisso com a democracia, valor que nos é caro, e com o Acordo de Paris, comum aos países dos dois blocos. A agenda ambiental é um ativo brasileiro e a pactuação entre os signatários do acordo sobre esta questão também contribui para o Brasil se projetar com um papel relevante na transição energética e no enfrentamento da crise climática.
Nem tudo são flores. Há um tortuoso caminho para o acordo sair do papel. É previsível a resistência de países como a França de Emmanuel Macron, extremamente protecionista em relação a seus produtos agrícolas. O episódio da “guerra do filé mignon” deflagrado pelo Carrefour diz bem do quanto setores abrigados no guarda-chuva do protecionismo temem competir com o dinamismo e produtividade do agronegócio brasileiro. Apesar disso, é possível prevalecer na União Européia uma postura de fortalecimento do multilateralismo e do livre comércio. Essa tendência deve se confirmar no Parlamento Europeu.
Demorou, mas finalmente chegou-se ao acordo. Isso se deve, em muito, ao alto profissionalismo e persistência do Itamaraty, entabulando negociações durante sucessivos governos brasileiros. Em cerca de um mês a diplomacia brasileira alcançou duas vitórias expressivas: na reunião do G20 do Rio de Janeiro, quando foi aprovada a Aliança Global Contra a Fome, e agora, em Montevidéu, com a assinatura do Acordo Mercosul-União Européia.
Os dois episódios representam o resultado mais expressivos da política externa do governo Lula. As evidências são cristalinas. Quando o governo deixa a política externa a cargo de profissionais competentes do Itamaraty e não se pauta por alinhamentos ideológicos, o Brasil se firma como liderança regional. Também colhe frutos quando opera em coerência com os valores tradicionais de nossa doutrina diplomática, como a defesa da democracia e do multilateralismo. Fica a lição.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 11/12/2024.