Vibrando com o gol de mão

Não vai bem um país em que se raciocina com o fígado.

Não funciona bem um tribunal superior que se baseia numa premonição de um ministro sobre o que poderia acontecer no futuro para tomar por unanimidade a decisão de cassar o voto de 344 917 eleitores.

Há muitas acusações contra Deltan Dallagnol. Há gravações que o comprometem. E não há nenhuma dúvida: ele não é uma pessoa simpática. Eu, pessoalmente, tive engulhos ao ver na TV as imagens de Dallagnol protestando contra sua cassação tendo junto dele, como papagaio de pirata, um dos filhos de Jair Bolsonaro – e muito provavelmente milhões de brasileiros sentiram o mesmo que eu.

Mas não se pode cassar um deputado porque ele é antipático – ou porque, quando era procurador, usou meios ilícitos para lutar pela condenação de Luiz Inácio Lula da Silva.

A Lei da Ficha Limpa diz que ficam inelegíveis por oito anos integrantes do Ministério Público (MP) que pedirem exoneração ou aposentadoria voluntária enquanto submetidos a Processo Administrativo Disciplinar (PAD). E o fato é que Dallagnol não era alvo de nenhum PAD no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) quando pediu desligamento.

Simples assim. É mais fácil que somar 1 mais 1. Não precisa desenhar.

O voto do relator, Benedito Gonçalves, que seria seguido por unanimidade pelos seis outros ministros do TSE, se baseou na suposição de ele viria a ser alvo de um PAD com base em um dos vários procedimentos preliminares apresentados no CNMP.

Não existia PAD, mas, ah, viria a existir. Com certeza!

E então, como Dallagnol viria a ser alvo de um PAD no futuro, e viria a ser condenado no futuro, então tá: fica inelegível desde já. Está feita a justiça.

A lei que diz que ficam inelegíveis por oito anos integrantes do Ministério Público (MP) que pedirem exoneração ou aposentadoria voluntária enquanto submetidos a Processo Administrativo Disciplinar… A lei? Ora, a lei…

Como disse José Nêumanne Pinto: “Premonição de Gonçalves convenceu 7 ministros do TSE a cassarem em 1 minuto a vontade livre e soberana de 345 mil cidadãos paranaenses”.

Como disse Merval Pereira: “Continuamos a fase mediúnica da Justiça brasileira, quando se arquiva um processo porque ele certamente prescreverá no seu decorrer e se condena alguém pelo que poderia fazer caso acontecesse isso ou aquilo. (…) O relator do caso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Benedito Gonçalves, usou uma interpretação premonitória para cassar a candidatura de Dallagnol.”

Como disse o jornal O Globo em editorial: “Juristas argumentam que não cabe à Justiça Eleitoral arbitrar se, no momento do desligamento, sindicâncias ou reclamações administrativas em fase inicial pareciam caminhar para um PAD. Para esse grupo, a inelegibilidade, medida extrema numa democracia, deve acontecer apenas a partir de uma exoneração com um PAD em andamento. É, literalmente, o que diz a lei.”

A lei? Ora, a lei…

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Dá grande tristeza ver como a polarização mexe com tudo em volta de nós. Tira a capacidade de usar a razão, nos torna escravos das emoções, nos faz reagir como se o Brasil fosse um gigantesco Coliseu romano. Quase meio Brasil gira o polegar para baixo pedindo a morte dos gladiadores com que não simpatiza, enquanto o quase meio Brasil do outro lado exige a extinção de seus oponentes.

Em dois dos grupos de WhatsApp de que participo, um da família, outro de amigos jornalistas que trabalharam no velho e bom Jornal da Tarde, muitas pessoas queridas – a rigor, a imensa maioria – comemoraram a cassação de Dallagnol como se o Brasil tivesse vencido a Copa do Mundo.

Que tristeza, meu Deus.

Não se trata, de forma alguma, de defender Dallagnol, defender o que ele fez como procurador, suas posições políticas. De forma alguma. Como disse O Estado de S. Paulo em editorial: “Em alguns casos, os abusos de operadores da Lava Jato restaram demonstrados de jure (vide as anulações de processos julgados por Sérgio Moro por suspeição de motivação política). E, de facto, a politização da operação foi ampla e notória. Tanto Dallagnol quanto Moro (e até a esposa deste) a usaram como trunfo para alavancar suas candidaturas. A operação cujo objetivo era apurar desvios de recursos públicos para fins particulares tornou-se ela mesma instrumento para promover ambições particulares: as carreiras políticas de servidores e seus parentes.”

Mas a questão é que, como diz o mesmo editorial, “a Lei é incontroversa: ex-magistrados ou procuradores podem se candidatar a menos que tenham sido demitidos em decorrência de processo administrativo ou judicial, ou se exonerado na pendência de processos administrativos disciplinares (PADs). No caso do ex-procurador não havia nem uma coisa nem outra”.

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Como disse Malu Gaspar: “Se houvesse um censo para esse tipo de coisa, provavelmente se constataria um recorde de taças tilintando em Brasília logo após a cassação de Deltan Dallagnol. Sem contar as mensagens, ligações e memes entre autoridades se congratulando por extirpar da política o ex-procurador da Lava-Jato de Curitiba. Em meio à celebração, houve quem disputasse o pioneirismo na luta contra a operação que, segundo seus críticos, “criminalizou a política” e deu asas ao bolsonarismo. Para os mais ambiciosos, cassar Dallagnol foi pouco.

– Só comemoro mesmo quando expulsar o Moro – me disse uma parruda autoridade da República.”

Um país que parece canção de Lupicínio Rodrigues: “Enquanto houver força em meu peito / Eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar

Um país que parece um imenso Coliseu romano. Um Maracanã continental em que as pessoas não se incomodam nem um pouco se o gol que deu vitória a seu time foi de mão – ao contrário, comemoram com ainda maior prazer.

Que tristeza.

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Interpretação da lei traz argumentos contra cassação de Deltan Dallagnol

Editorial, O Globo, 18/5/2023

Será salutar para a democracia brasileira se o Supremo Tribunal Federal (STF) analisar a decisão tomada por unanimidade no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cancelando o registro de candidatura do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR). Ao saber do veredito, que acarreta perda de mandato imediata, o ex-procurador da Operação Lava-Jato em Curitiba disse que “344.917 vozes paranaenses” tinham sido caladas. Mas políticos eleitos, por mais votos que recebam, estão sujeitos à cassação. O melhor argumento em favor de Dallagnol é a interpretação da Lei da Ficha Limpa usada para condená-lo.

O ministro Benedito Gonçalves, relator do caso, considerou que Dallagnol pediu exoneração do cargo de procurador em novembro de 2021, 11 meses antes da eleição, para evitar uma punição administrativa. Pela Lei da Ficha Limpa, ficam inelegíveis por oito anos integrantes do Ministério Público (MP) que pedirem “exoneração ou aposentadoria voluntária” enquanto submetidos a Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Em seu voto, Gonçalves afirmou que Dallagnol “agiu para fraudar a lei, uma vez que praticou, de forma capciosa e deliberada, uma série de atos para obstar processos administrativos disciplinares contra si e, portanto, elidir a inelegibilidade”.

Só que Dallagnol não era alvo de nenhum PAD no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) quando pediu desligamento. Ele já fora condenado em dois PADs, sem perda do cargo, e estavam em andamento apenas procedimentos preliminares. Juristas argumentam que não cabe à Justiça Eleitoral arbitrar se, no momento do desligamento, sindicâncias ou reclamações administrativas em fase inicial pareciam caminhar para um PAD. Para esse grupo, a inelegibilidade, medida extrema numa democracia, deve acontecer apenas a partir de uma exoneração com um PAD em andamento. É, literalmente, o que diz a lei.

Outros juristas defendem a decisão do TSE. Afirmam que ela se inspira na jurisprudência do tribunal sobre fraudes. Para eles, a exoneração ocorreu para evitar um PAD e a consequente inelegibilidade. Argumentam ainda que Dallagnol esperava decisão do STF sobre dois PADs que o puniram com censura e advertência. Mas, mesmo se confirmadas, tais punições não o enquadrariam na Lei da Ficha Limpa.

O pedido de cancelamento do registro de candidatura foi apresentado pela federação PT, PCdoB e PV e pelo PMN. Assim que o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná rejeitou o pleito, os partidos recorreram ao TSE. Depois da cassação, próceres do PT e aliados festejaram. A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, usou uma rede social para chamar Dallagnol de “ficha suja”. É esperado que o agora ex-procurador e ex-deputado recorra ao STF. Caso isso aconteça, a Corte precisa esclarecer se a cassação de Dallagnol partiu de uma leitura equivocada da lei. Em jogo não está apenas o mandato do deputado federal mais votado no Paraná em outubro. O pior para o Brasil é esse tipo de decisão variar de acordo com a circunstância política e o governo de turno.

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O sistema é f*#@

Por Merval Pereira, O Globo, 18/5/2023

Continuamos a fase mediúnica da Justiça brasileira, quando se arquiva um processo porque ele certamente prescreverá no seu decorrer e se condena alguém pelo que poderia fazer caso acontecesse isso ou aquilo. Tudo faz parte, no entanto, de um esquema organizado para liberar condenados e condenar os que os condenaram. E tudo dentro da lei, “com Supremo, com tudo”, como previa o ex-deputado Romero Jucá. Ele, por sinal, anda livre, leve e solto fazendo política em Brasília, embora tenha sido derrotado mais uma vez na eleição de seu estado. A Justiça não o apanhou, mas o eleitor sim.

No primeiro caso, a título de exemplo, Lula não pode mais ser punido pelo caso do tríplex do Guarujá, pois o Ministério Público Federal alegou que, com os prazos prescricionais reduzidos pela metade, já que ele tem mais de 70 anos, os crimes de que é acusado — lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva — já estariam prescritos se um novo julgamento ocorresse. O processo foi arquivado, e Lula considera-se inocentado nesse e noutros casos.

O caso do deputado federal eleito e ex-procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol, que perdeu o mandato por unanimidade em julgamento que durou um minuto, enquadra-se na segunda hipótese. O relator do caso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Benedito Gonçalves, usou uma interpretação premonitória para cassar a candidatura de Dallagnol, pois é proibido que um integrante do Ministério Público peça demissão do cargo para evitar uma condenação. O curioso nesse caso é que não existia nenhum processo administrativo disciplinar contra ele no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) quando se exonerou.

Mas poderia vir a existir, alegou o ministro Gonçalves, pois havia na ocasião 15 ações preliminares contra ele, que poderiam se transformar em Processos Administrativos Disciplinares (PADs) que, por sua vez, poderiam acarretar punição a Dallagnol. O relator afirmou que essas ações preliminares “potencialmente ensejariam processos administrativos disciplinares com eventual penalidade de demissão caso o recorrido não tivesse requerido de forma antecipada sua exoneração”.

E o que caracteriza a má-fé de Dallagnol, de acordo com o ministro Benedito Gonçalves? Ele poderia ficar no cargo até seis meses antes da eleição e, mesmo assim, resolveu sair antes. Então, ficamos assim: se uma das ações preliminares tivesse se transformado em processo administrativo e se o CNMP tivesse punido Dallagnol, ele teria sido enquadrado na Lei da Ficha Limpa e não poderia ter concorrido à eleição. Sendo assim, vamos puni-lo nesse metaverso hipotético, para que ninguém sequer pense em burlar a legislação.

Quer dizer que o TSE já sabia que Dallagnol seria punido pelo CNMP? E como podia ter tanta certeza assim o relator? Então, ficamos assim: o ex-procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol foi eleito deputado federal com mais de 300 mil votos e está impossibilitado de exercer seu mandato por uma adivinhação do ministro Benedito Gonçalves sobre o que poderia ter ocorrido, seguida por todos os ministros do TSE.

Nas redes sociais, políticos da estirpe do ex-deputado Eduardo Cunha e do senador Renan Calheiros vibram com a condenação e já clamam pela punição do ex-juiz Sergio Moro, contra quem também há processo no TSE. Enquanto isso, no Congresso, segue impunemente a votação para uma anistia a todos os atos ilegais cometidos pelos partidos políticos, desde o uso indevido de dinheiro público até o não cumprimento das regras sobre cotas para mulheres e negros.

Pode-se dizer que houve excessos na Operação Lava-Jato, mas os fatos não foram alterados. A corrupção existiu, o dinheiro foi roubado, parte dele foi devolvida. Hoje, todos dizem que foram obrigados a delatar. Até Emílio Odebrecht escreveu um livro onde afirma que não houve roubo da Odebrecht. Palocci também quer desdizer o que disse, alegando ter sido pressionado. Como disse o Capitão Nascimento, personagem de “Tropa de elite 2”, “o sistema é f*#@”.

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Decisão esquisita em tempos estranhos

Editorial, O Estado de S. Paulo, 19/5/2023

Os sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) votaram pela cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) com base na Lei da Ficha Limpa. Apesar de unânime, a decisão é controversa. Isso porque a Lei é incontroversa: ex-magistrados ou procuradores podem se candidatar a menos que tenham sido demitidos em decorrência de processo administrativo ou judicial, ou se exonerado na pendência de processos administrativos disciplinares (PADs). No caso do ex-procurador não havia nem uma coisa nem outra. Ele já fora penalizado em dois PADs, mas com advertência e censura. Quando se exonerou, tramitavam 15 procedimentos, entre reclamações e sindicâncias, mas ainda não convertidos em PADs.

A interpretação de regras de inelegibilidade deve ser restritiva, privilegiando maximamente o gozo do direito fundamental de se candidatar. Por isso, o Ministério Público Eleitoral e o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (por unanimidade) entenderam que a candidatura era limpa.

Ainda assim, o relator no TSE, ministro Benedito Gonçalves, justificou sua decisão alegando “fraude à lei”: a instauração de um ou mais PADs era iminente e ao se exonerar Dallagnol teria se valido de um exercício regular de direito para burlar a finalidade da lei. Num eventual recurso, a Suprema Corte avaliará a legitimidade dessa fundamentação. Mas, mesmo admitindo-se uma interpretação indevidamente extensiva da lei, a decisão não contraria seu espírito.

Para garantir que o Ministério Público cumpra sua missão de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, a Constituição multiplicou suas prerrogativas e lhe conferiu ampla autonomia. Em contrapartida, vedou aos procuradores “exercer atividade político-partidária”. As restrições eletivas regulamentam disposições constitucionais que visam a “proteger a probidade administrativa” e “a legitimidade das eleições” contra “o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

 

Em alguns casos, os abusos de operadores da Lava Jato restaram demonstrados de jure (vide as anulações de processos julgados por Sérgio Moro por suspeição de motivação política). E, de facto, a politização da operação foi ampla e notória. Tanto Dallagnol quanto Moro (e até a esposa deste) a usaram como trunfo para alavancar suas candidaturas. A operação cujo objetivo era apurar desvios de recursos públicos para fins particulares tornou-se ela mesma instrumento para promover ambições particulares: as carreiras políticas de servidores e seus parentes.

A Lava Jato deixou um inestimável legado ao desbaratar casos escabrosos de corrupção e resgatar a confiança dos brasileiros na igualdade de todos perante a lei. Mas, ao colocarem-se acima da lei para combater a corrupção e abusarem de seus poderes para viabilizar seus projetos políticos e inviabilizar os de adversários, os operadores da Lava Jato traíram esse legado. Ao punir corruptos, a Lava Jato elevou a Justiça; ao justiçar políticos, o lavajatismo a desmoralizou.

O corolário aí está. O messianismo punitivista inflamou os humores anti-instituições que catapultaram o bolsonarismo ao poder. Dallagnol fez seu discurso de desagravo ladeado por essa malta. De sua parte, os petistas hoje no poder, sem disfarçar seus ânimos vingativos e seu próprio messianismo, festejaram a cassação de um representante eleito com mais de 300 mil votos como mais um “inimigo do povo” abatido.

A revolução, como se diz, devora seus filhos. Dallagnol usou e abusou da interpretação extensiva das leis para perseguir políticos, a pretexto de regenerar o País de acordo com suas convicções delirantes. Sua derrocada política – por uma sentença juridicamente duvidosa, cuja unanimidade sugere um ânimo punitivista político – é, ironicamente, um emblema dessa desvirtuação. Que ao menos esse desfecho sirva de advertência a quem confunde política com messianismo e justiça com vingança.

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Cassar Dallagnol foi pouco

Por Malu Gaspar, O Globo, 18/05/2023

Se houvesse um censo para esse tipo de coisa, provavelmente se constataria um recorde de taças tilintando em Brasília logo após a cassação de Deltan Dallagnol. Sem contar as mensagens, ligações e memes entre autoridades se congratulando por extirpar da política o ex-procurador da Lava-Jato de Curitiba. Em meio à celebração, houve quem disputasse o pioneirismo na luta contra a operação que, segundo seus críticos, “criminalizou a política” e deu asas ao bolsonarismo. Para os mais ambiciosos, cassar Dallagnol foi pouco.

– Só comemoro mesmo quando expulsar o Moro – me disse uma parruda autoridade da República.

Por mais insaciável que seja o desejo de vingança, porém, o “sistema” não tem do que reclamar. Nesta semana, mais um passo foi dado contra a “criminalização da política”. Foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados a anistia para todas as irregularidades nas prestações de contas dos partidos sobre o uso do fundo eleitoral. De compra de toneladas de carne e reforma de piscina a recibo fraudulento de gráfica, passando pela aquisição de carros de luxo e aeronaves, todo “pecado” cometido com o dinheiro público será perdoado caso a emenda constitucional passe no plenário da Câmara. Ficarão liberadas também as legendas que não cumpriram as cotas para candidaturas de mulheres e de negros. Todo o sistema político apoiou — do PT de Lula ao PL de Bolsonaro. Só PSOL, Rede e Novo foram contra. Não precisa ser especialista para saber que essa anistia torna a Justiça Eleitoral inútil, a menos que seja para cassar políticos como Dallagnol. Ainda assim, até agora não se ouviu no TSE nenhuma objeção.

Também não foi só em Brasília que o sistema encontrou motivos para celebrar. Na Petrobras, começou a deslanchar a mudança na política de preços dos combustíveis tão cobrada por Lula. A companhia informou que abandonará a paridade internacional para se tornar competitiva — o que na prática quer dizer que ela buscará uma forma de baixar os preços para ajudar o governo a controlar artificialmente a inflação. Nos tempos de Dilma Rousseff, essa política provocou um rombo de cerca de R$ 120 bilhões na companhia — o equivalente a quase dois anos de Bolsa Família. Levou tempo para saneá-la, até que em 2022 ela devolveu mais de R$ 350 bilhões em tributos e dividendos ao governo. Isso, contudo, não parece importar para o CEO, Jean Paul Prates, nem para o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Eles estão empenhados em voltar ao passado, da mesma forma que parecem decididos a fazer crer que o saque promovido na petroleira pelos mesmos partidos que hoje se digladiam por cargos e verbas do governo compõe alguma fake news a ser investigada por Alexandre de Moraes no STF.

Na tarefa, estão alinhados a gente como Emílio Odebrecht, que lançou um livro só para dizer que foi torturado e coagido pela Lava-Jato a confessar o pagamento de bilhões de reais em propina e caixa dois. É o mesmo Emílio que ri à larga no vídeo de sua delação premiada, contando como avisou a Lula que seu pessoal tinha “boca de crocodilo”. E que tinha os cem melhores advogados do Brasil a sua disposição, mas só agora, com a volta de Lula ao poder, decidiu falar em tortura e coação.

Em Brasília, porém, ninguém acha isso estranho. Há até quem ostente indignação com a “injustiça” sofrida pelo pobre empreiteiro.

– Coisa de pervertidos. Claramente se tratava de prática de tortura, usando o poder de Estado – disse Gilmar Mendes outro dia no Supremo.

Como o decano do Supremo pode ser acusado de muita coisa, menos de ser bobo ou ingênuo, faz sentido, sim, imaginar que a punição a Dallagnol é só o começo. No voto pela condenação, o ministro do TSE Benedito Gonçalves sustentou que Dallagnol deveria ser punido por renunciar ao posto no Ministério Público para escapar de Processos Administrativos Disciplinares (PADs). Só que não havia PAD algum em curso quando Dallagnol renunciou.

Numa entrevista ao Estadão, o professor da Universidade de São Paulo Rafael Mafei — um crítico da Lava-Jato — diz que há “incongruências” na decisão do TSE e reconhece que “talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”. Ninguém precisa ter simpatia por Dallagnol para entender o que essa constatação significa. Aliás, bem ao contrário. Criticava-se na Lava-Jato, e com razão, justamente aquilo que acontece agora com sinal trocado. Mas a História mostra que, na política brasileira, a lei do retorno costuma valer mais que a da ficha limpa. O mesmo poder que ontem cassou Dallagnol pode, amanhã, acabar com a festa do sistema. E aí ninguém poderá reclamar se não houver quem defenda as garantias que estão indo para o espaço.

19/5/2023

Este texto, sem as íntegras dos artigos e do editorial, foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 20/5/2023. 

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