A política quase nunca é o que parece. A semana passada foi exemplar para comprovar o dito. Tinha-se na conta que, ao derrubar mais de uma dezena de vetos presidenciais em uma única sessão, o Congresso Nacional teria imposto uma derrota fragorosa ao governo Lula, que, ao contrário, chegou na sexta-feira sorridente, dividindo vitórias com o Parlamento. Perdeu onde sabia que perderia e ganhou onde precisava. E ainda escreveu na história um feito e tanto: a aprovação de um novo sistema tributário, empacado há quase quatro décadas. Para tal, fez-se política – com “p” maiúsculo e minúsculo.
Em outubro, quando vetou a maior parte da Lei 14.701, pela qual só as terras ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, têm efeito para demarcação, Lula jogou para a torcida. Sabia, ao que tudo indica, que o veto seria derrubado e a questão voltaria ao STF, confessamente contrário ao marco temporal.
Os deputados e senadores que aprovaram a lei e derrubaram o veto também jogaram para as suas plateias. Sabem que serão derrotados no Supremo, até porque não se muda a Constituição com uma lei ordinária. Tanto é assim que a poderosa bancada do agronegócio já tem pronto um Projeto de Emenda Constitucional para tentar fixar de vez o marco temporal na Carta.
A derrubada do veto da desoneração da folha para 17 setores ditos como os maiores empregadores do país, que também terá sua constitucionalidade arguida no STF, parecia ser outro golpe duro. Nem tanto.
Com o veto, o ministro da Fazenda Fernando Haddad conseguiu espaços para debater o privilégio a esses setores, cujo lobby é pesadíssimo. Fez vir à tona estudos com base nos números da Pnad Contínua questionando a validade da desoneração ao apontar que desde 2011, quando foi instituída, os segmentos selecionados não fazem por merecer a regalia. Juntos, eles empregam 8,9 milhões dos 37,4 milhões de brasileiros com carteira assinada, e nenhum deles figura entre os sete maiores empregadores do país. Mais: nos últimos 10 anos, as empresas desoneradas encolheram sua oferta de emprego em 13%.
Haddad e Lula sabiam que o Congresso cederia à pressão desses segmentos, derrubando o veto. Nem fizeram esforço contrário, preferindo “trocá-lo” pelo item mais caro ao ministro: a aprovação do aumento da tributação federal sobre empresas que têm benefícios de ICMS para custeio, que aconteceu na manhã da sexta-feira. Com ela, assegurou-se arrecadação extra para 2024 que, segundo as contas da Fazenda, pode chegar a R$ 35 bilhões.
O troca-troca também se deu de forma menos republicana, com oferta de cargos nobres para indicados dos presidentes da Câmara e do Senado, e em escalões inferiores para outros líderes. Além da liberação de emendas parlamentares, que, embora previstas, funcionam como moeda quando o governo precisa de votos.
Na quarta-feira, enquanto o ministro da Justiça Flávio Dino e o subprocurador Paulo Gonet eram sabatinados na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Lula e Haddad almoçavam com o presidente da Câmara, Arthur Lira. Ali, antes mesmo do resultado apertado da aprovação de Dino para o Supremo, que só viria à noite, os três selaram o destino dos dias seguintes. O Congresso exibiria o seu poder derrotando Lula e, ao mesmo tempo, daria ao governo suas maiores vitórias: bilhões para o Tesouro em 2024 e a reforma tributária, que, de acordo com o combinado, teria seu mérito repartido entre o Executivo e o Legislativo.
Há quem diga que a articulação política do governo falhou, deixando para as últimas semanas do ano ações de importância vital para o país, ou que valorize o “mal estar” de Lira quanto à demora para cessão de cargos. As votações aceleradas e a prevalência do combinado demonstram o inverso. Propositalmente, o governo retardou a liberação de emendas e indicações, enquanto Lira, também de caso pensado, segurou a pauta. Ao final, cada parte levou o seu quinhão. Fez-se política.
Resta saber como ficam os indígenas no limbo de leis que ora valem, ora não. E qual o custo dessas negociações – das emendas, dos privilégios enxertados aqui e ali na reforma tributária, do fundão eleitoral variando entre R$ 2 bilhões e R$ 5 bilhões que está por vir, possivelmente incluído no pacote de acertos. Aos brasileiros caberá pagar a conta.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/12/2023.