O veterano jovem repórter

Toca meu telefone no meio da tarde na sala, Mary atende, vê que é o Mitre, diz alô, Mitre – e o Mitre não diz nada, achando que tinha ligado errado. Mas rapidamente Mary avisa que vai passar pra mim. Pego o telefone e já vou dizendo: – “Pô, meu, estou curiosíssimo para ler seu livro!”

Fernando Lima Mitre, com quem eu havia falado uma única vez por telefone nos últimos, digamos, cinco anos, ou talvez mais, diz que acabou de mandar os originais para a gráfica, e tem uma dúvida, talvez eu pudesse ajudar. Lembra que demos na Afinal uma matéria sobre a luta armada? Pois é. Tinha uma foto do filho do Fleury segurando uma foto do pai, e uma foto do filho do Marighella segurando uma do pai. Eu escrevi isso no livro – mas agora me deu uma dúvida. Você lembra disso?

Claro que eu me lembrava que demos capa sobre luta armada na revista Afinal, ainda na ditadura militar, já moribunda mais viva, quando ninguém na imprensa ousava tocar no assunto que, nos piores momentos do regime, era absolutamente proibido. Mas é claro também que não me lembrava dos detalhes das fotos. Disse a ele que iria procurar na coleção e ligaria em seguida. Agradeceu, com algo tipo: Que bom, se for rápido ainda dá pra eu ligar lá pra gráfica e corrigir a informação, caso seja necessário.

Eu sou o único sujeito do mundo que tem a coleção completa da revista Afinal – completa, organizada, encadernada. Se estivéssemos nos Estados Unidos, é bem provável que a Library of Congress tivesse uma, e a minha fosse uma das duas únicas. Como não estamos lá, a minha é the only one.

Peguei os seis primeiros volumes, e Mary e eu começamos a folhear à procura da capa. Não demorou nem dez minutos e a gente já tinha achado. Foi no número 27 da revista, data de capa 5 de março de 1985. “Página infeliz da nossa História – Os anos da luta armada, revistos pelo novo Brasil”.

Sim, há uma grande foto do filho do Fleury, e uma foto da mulher de Marighella segurando uma foto dele. Não o filho de Marighella, mas a mulher, Clara, eu digo. Ele: ah, a Clara, é? Como era mesmo o sobrenome nome dela? Achei – está na abertura da matéria, Clara Charf. Ele: isso mesmo, Clara Charf. Tá bom. Ainda dá tempo pra ligar pra gráfica e acertar. Obrigado, um abraço!

Há mais de três décadas diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes de Televisão, setenta e muitos ou oitentinha e tantos, Fernando Lima Mitre mantém a vivacidade de um jovem porém safo repórter – primeiro desce a matéria para a oficina, já que deu o deadline. Depois recheca aquela informação, porque sabe que, se for o caso, dá pra descer até o quarto andar e acertar lá na última hora com o secretário gráfico.

Que maravilha!

***

Uns cinco ou seis dias atrás, o Rabino – Moisés Rabinovici – havia colocado um post no grupo de zap do Jornal da Tarde informando que o Mitre estava terminando o livro em que conta os bastidores dos debates dos candidatos à Presidência da República, desde que eles existem – afinal, como todos sabemos, a Bandeirantes foi a pioneira nisso, desde a primeira eleição logo após a redemocratização. E ninguém melhor que o Mitre para contar os bastidores dos debates todos, já que ele dirigiu o jornalismo da rede dos Saad ao longo de todos estes anos…

Em seu post no zap dos veteranos do JT, Rabino mencionou uma ou duas histórias que o livro conta – e botou a foto da capa do livro, Debate na Veia.

Uma figura, o Mitre. A capa já está pronta há dias. O texto, ele só entregou para a gráfica agora.

E sei lá se além da questão de quem estava segurando a foto do Marighella na reportagem da revista Afinal ele ainda não vai ligar de novo para a gráfica para acertar algum detalhinho.

Vai sair numa co-edição da Letra Selvagem e Kotter Editorial. Quando, ainda não se sabe. Mas que o livro é uma maravilha, não tenho nem 0,1% de dúvida.

***

Tive muitos mestres no jornalismo – e que mestres, meu Deus do céu e também da Terra. Outro dia mesmo falei deles em um texto aqui, sobre meu reencontro com o Fausto Macedo, depois de muitos anos sem nos falarmos.

Quando eu cheguei à Reportagem Geral do Jornal da Tarde, em julho de 1970, aos 20 anos de idade, foca de tudo, o editor era Fernando Portela, o sub-editor, Sandro Vaia, o chefe de reportagem, Laerte Fernandes. Os repórteres eram ases como Valdir Sanches, Inajar de Souza, Percival de Souza, Antônio Carlos Fon, Randáu Marques, Moacir Bueno. E os copydesks, os caras que acertavam, corrigiam, melhoravam os textos dos repórteres, quando necessário,  eram, naquele início dos anos 1970, Gilberto Mansur, Anélio Barreto, Sérgio Rondino, José Eduardo Borgonovi e Silva, o Castor, Marco Antônio Menezes, Humberto Werneck.

Só craques. Uma seleção de craques.

Mitre havia sido o cara que montara a Editoria de Reportagem Geral. Era o mestre daqueles meus mestres todos – e, na época, ocupava o terceiro cargo mais importante na estrutura do jornal, depois do redator-chefe Murilo Felisberto e do secretário de redação Ivan Ângelo.

(Meu Deus, quanto mineiro!)

Não me canso jamais de contar esta história que é fundamental na minha vida profissional:

Murilo Felisberto, A Rainha, como todos a chamavam na redação, não gostava do foca levado ao jornal por Gilberto Mansur. Jamais gostou. (A coisa era recíproca, mas isso não tem importância.) O foca rapidamente virou copydesk, e foi sendo colocado como um sub-editor de plantão quando necessário. Fiz lá uma ou outra besteira, e A Rainha baixou um édito: Sérgio Vaz não poderia jamais ficar responsável pela edição em plantão algum.

Quando, com a saída da Rainha, Fernando Mitre assumiu a chefia de redação do Jornal da Tarde, uma das primeiras coisas que fez foi revogar aquele édito real.

***

Alguns anos mais tarde, já bem maduro, experiente, não mais o jovem editor de Reportagem Geral capaz de, se houvesse um grande fato acontecendo, varar a noite e continuar trabalhando direto e reto no dia seguinte, sem tempo nem mudar de camisa, em decisão surpreendente, que não condizia com sua personalidade de homem de bom senso, pé no chão, mineiríssimo, nada aventureiro, Fernando Mitre abriu mão da chefia de redação do Jornal da Tarde, de um salário magnífico em uma das empresas mais estáveis do país na época, para embarcar no conto de um cubano que dizia ter mundos e fundos, dinheiro às pencas, e iria lançar uma revista semanal de informação para concorrer com a Veja e a IstoÉ.

E me incluiu no pequeno mas seleto grupo dos caras que deixariam o conforto daquela empresa que era mãe e pai, a S/A O Estado de S. Paulo, para criar a revista Afinal.

Assim como no Jornal da Tarde, era um time de craques. Enxuto, bem enxuto, mas com craques saindo pelo ladrão. Logo abaixo do Mitre, diretor de redação, estavam Sandro Vaia, Anélio Barreto e Ari Schneider. Na Política, Carmo Chagas e Melchíades Cunha Júnior. Na Economia, Pedro Cafardo, Nair Suzuki. Na Internacional, Gabriel Manzano Filho. Na Cultura, Gilberto Mansur, Marta Góes, Maria Amélia Rocha Lopes, Dirceu Soares. A Reportagem Geral tinha Mário Schwartz, Tonica Chagas, Luiz Vita; o editor era eu. (Nem todo time é perfeito, vai…) José Roberto Palladino fazia com Ari Schneider as edições regionais – sim, havia edições com capas diferentes para o Sul, o Nordeste, o Centro-Oeste, uma loucura. As reportagens especiais ficavam por conta de Valdir Sanches, Geraldo Mayrink e Miguel Ângelo Filiagi. Amilton Vieira chefiava a fotografia, e Esdra Guimarães do Carmo, o Guiminha, fazia a produção. A Sucursal de Brasília tinha Luiz Cláudio Cunha, Míriam Guaraciaba, David Renault. A Sucursal do Rio era dirigida por Elizabeth Carvalho, que, durante um bom período, teve como sub um jovem promissor, chamado Ali Kamel – ele mesmo, o diretor geral de jornalismo da Rede Globo e da GloboNews.

A Afinal durou quatro anos. O dinheiro do cubano maluco que conseguiu seduzir o Mitre durou tipo um ano e meio – e aí foram ficando lá só os que não procuraram outro emprego rapidamente e os loucos que achavam que ainda valia a pena tentar. A revista não aconteceu, no sentido de que não chegou perto de propriamente fazer sucesso nas bancas – mas produziu um monte de belíssimas reportagens, como essa que foi a capa da edição de 5 de março de 1985, o mês em que o último general iria entregar a faixa presidencial para um civil, mas acabou saindo pela porta dos fundos, e o civil que deveria receber a faixa acabaria morrendo sem ter sido presidente da República.

Um monte de belíssimas reportagens, amplamente ilustradas com fotos abertas – algo que as duas outras revistas semanais de informação não faziam até então. Textos longos, caprichados, seguindo o estilo que havia dado tão certo no Jornal da Tarde. Como colunistas de política – que coisa mais chique! -, Fernando Gabeira, Bolívar Lamounier, Hermano Alves.

A rigor, penso aqui agora, a Afinal que Fernando Mitre inventou e nós fizemos foi provavelmente a publicação da imprensa brasileira que melhor expressou e traduziu a passagem da ditadura para a democracia, naqueles meados de anos 80. Talvez – em parte, pelo menos – exatamente por ter nascido em 1984, o ano do auge da campanha pelas diretas-já, quando já se sentia no ar a sensação de que a ditadura estava em seus estertores.

Tenho enorme orgulho de ter estado lá, ter participado de tudo, do começo até o finalzinho.

Tenho uma imensa admiração por esse senhor Fernando Lima Mitre. E uma imensa, infinita gratidão a ele.

E, at last but at least, tenho também a única coleção encadernada da p$%ra da revista!

25 e 26/9/2023

5 Comentários para “O veterano jovem repórter”

  1. Salve Servaz! Adorei lê-lo. Quero lhe dizer que o nosso Mitre me surpreende com uma fantástica memória. Lembra de tudo, com detalhes. Nesse processo deve ter suspeitado do erro que o fez parar a gráfica, depois de esclarecido por você. Alegria trabalhar com ele. Pena que só tenha tido acesso a quatro dos 50 capítulos do livro. São brilhantes. Boas histórias. Vamos nos regalar quando for lançado. Mas será preciso levar o Mitre ao lançamento. Ele tem me parecido avesso a autógrafos. Abração pra você e Mary.

  2. Delícia receber esta mensagem, Rabino!
    E que boas notícias!
    Ah, mas nós vamos levar o homem para dar autógrafo no lançamento nem que seja à força! Vamos fazer uma bela festa!
    Grande abraço, e obrigado, caríssimo Rabino.
    Sérgio

  3. No grupo de WhatsApp do Jornal da Tarde, meu amigo Ari Schneider postou o texto abaixo. Pedi a autorização dele para reproduzir aqui, porque é muito importante o que ele conta – algo que, confesso, nunca soube.

    Eis aqui:

    “Essevê, amigo e colega querido, aproveito o gancho de seu relato sobre o breve sonho que foi Afinal para lembrar mais um lance sobre o caráter raro que Fernando Mitre sempre foi.
    Na ocasião, o que para muitos pareceu uma debandada aventureira de um pessoal do Jornal da Tarde foi, na verdade, resultado de uma costura do Mitre para mitigar um portentoso passaralho que a direção da empresa estava cobrando do comando do JT para equilibrar as contas da S.A.
    Pressionado pelo RH, assim como Murilo Felisberto, para apresentarem a lista de cortes, Mitre pediu um prazo no qual negociou com um grupo de cubanos de Miami a montagem de uma equipe para fazer uma revista semanal. Os colegas recrutados (eu entre eles) se demitiram e foram com Mitre para a Afinal. Não foram felizes para sempre, mas o projeto foi bom enquanto durou e valeu para que cada um achasse com calma uma nova colocação no mercado (eu, por exemplo, virei redator-chefe da Playboy!!!).
    O próprio Mitre foi comandar o jornalismo na Band, onde mostrou mais uma vez o excepcional jornalista que é. A par disso, onde continuou dando lições de competência e integridade que se transmitem ao veículo em que milita.”

  4. História ótima para o jornalismo a da revista Afinal, Servaz, num texto belíssimo completado com o depoimento fundamental do Arizinho. Abração, Heloisa

  5. Caro Sérgio, que maravilha de história e ainda ter vivenciado tudo isso ao lado de verdadeiros amigos e craques. Suponho que a revista não teve retorno financeiro que imaginaram, mas tenha certeza que todos deixaram suas marcas e conquistaram muito mais “em riqueza” Parabéns a todos!

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