O esgotamento presidencialismo de coalizão

Em 1988 o sociólogo e escritor Sérgio Abranches cunhou o termo “presidencialismo de coalizão”, em alentado artigo publicado na revista Dados. Chamava a atenção para a diferença entre nosso modelo e o presidencialismo dos Estados Unidos. Lá funciona o bipartidarismo e é possível o presidente do país governar mesmo sem maioria no Parlamento. Nosso modelo político advindo da Constituição-Cidadã gerou um quadro de multipartidarismo no Congresso Nacional e tornou impossível o presidente governar sem construir uma coalizão majoritária. Sem ela, não há como aprovar emendas constitucionais dada a exigência de ter 60% dos votos dos parlamentares.


Por três décadas, o presidencialismo de coalizão deu conta do recado, propiciando a governabilidade, principalmente nos anos Fernando Henrique Cardoso e nos dois primeiros anos de Lula. Esse modelo, como destacaria Sérgio Abranches, em 2018, “resistiu a dois processos traumáticos de impeachment”, possibilitou, sem traumas, a passagem do poder do bloco hegemonizado pelo PSDB para o bloco orbitado em torno do PT e sobreviveu aos processos do “mensalão” e do “petrolão”.

Autor do livro Presidencialismo de Coalizão – Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro, Abranches revisitou o tema em artigo recém publicado na Folha de S.Paulo. Desta vez para abordar a crise do presidencialismo de coalizão em um quadro em que o governo Lula não conseguiu construir maioria parlamentar e amargou, recentemente, importantes derrotas na Câmara de Deputados, faltando-lhe forças até para fazer valer a estruturação dos ministérios de seu governo.

De acordo com o novo artigo, as causas dessa crise são mais profundas do que os problemas de desarticulação política do governo Lula e remetem para mudanças estruturais da política brasileira. A começar pela desestruturação do “padrão que formou governo e oposição, de 1994 e 2014, e equilibrava o processo político”. Tínhamos um “bipartidarismo” na prática no tocante à disputa presidencial e um multipartidarismo na eleição parlamentar, com os partidos disputando entre si quem elegeria mais deputados e senadores para aumentar seu cacife na “coalizão presidencial”.

Havia ainda outro fator de estabilidade da governabilidade e do próprio multipartidarismo: a existência de partidos-âncoras que serviam “como nódulos no espaço ideológico da coalizão”. Os partidos líderes da coalizão presidencial tinham, à sua direita e à esquerda, partidos âncoras. O PFL no governo FHC e o MDB nos governos petistas. Isso não existe mais no multipartidarismo dos tempos atuais, o que tornou a governabilidade “mais penosa e mais dependente do desempenho macroeconômico do governo”.

A segunda grande mudança foi a alteração das relações entre o Parlamento e o Poder Executivo, com o Legislativo aumentando o seu poder. Ganhou novos instrumentos de barganha e força no Orçamento, enquanto o poder de decreto do presidente da República diminuiu.

Sérgio Abranches aponta ainda outras alterações que dificultam a formação de uma maioria estável por parte do governo. Entre elas, mudanças na legislação político-eleitoral, como cláusula de barreira, proibição de coligações, financiamento público de campanha, que impulsionam a diminuição do número de partidos e a formação de grandes blocos com os quais o governo tem de negociar. O processo levou ao fortalecimento dos presidentes das casas legislativas, particularmente do presidente da Câmara e do colégio de líderes.

O artigo de Sérgio Abranches é brilhante, mas falta responder a uma questão central: o presidencialismo de coalizão continua o mais adequado para a realidade brasileira ou se esgotou?

Ao admitir que “talvez não seja factível” Lula construir uma base parlamentar sólida (pois “as coalizões se tornaram líquidas”), finda por passar recibo de que esse modelo já não assegura a governabilidade e a estabilidade política do país e se transformou em fator de crises entre o Executivo e o Legislativo, com o Poder Judiciário cada vez mais sendo provocado a arbitrar os conflitos.

Na verdade, o presidencialismo de coalizão já está em processo de mutação, só que de forma não virtuosa e submetida aos interesses do Centrão. Por aí não surgirá uma boa solução. A hora, portanto, é de o país buscar alternativas ao presidencialismo e a relação entre os poderes da República, bem como do nosso sistema de representação.

Na legislatura anterior, o então deputado federal Samuel Moreira apresentou uma emenda constitucional para a instituição do semipresidencialismo, sistema baseado na separação das funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo. Esse sistema combina elementos positivos do presidencialismo com os do parlamentarismo, e é mais eficaz para a superação de crise políticas.

A dificuldade para sua implantação no Brasil é a nossa tradição caudilhesca, da qual não escapa nem mesmo grande parte da esquerda. Mas, como chama a atenção o cientista político José Álvaro Moises, “a esquerda democrática não pode se furtar a formular uma proposta de reforma do presidencialismo e das relações entre os três Poderes, bem como das instituições de representação”.

Talvez estejamos vivendo uma fase de transição do nosso sistema. O presidencialismo de coalizão já não responde às necessidades dos tempos atuais, mas ainda não há uma alternativa a ele. O governo Lula, sem entender as mudanças em curso, também não tem uma resposta ao esgotamento do velho modelo. Como disse Gramsci, “a crise consiste no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece. Esses sintomas já são visíveis a olhos nus.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 14/6/2023. 

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