Há sempre boa vontade com presidentes, quando tomam posse. Não poderia ser diferente com os discursos de Lula no Congresso e no parlatório do Palácio do Planalto. Ainda mais quando o novo presidente assume o posto após quatro anos de conflitos frequentes de Jair Bolsonaro com instituições. Saudável que suas palavras e os gestos tenham despertado sentimentos de esperança quanto à nova fase a ser vivida pelo país.
O Brasil precisa respirar tranquilidade. Sua mensagem principal se concentrou no combate à miséria e na defesa da democracia. Os dois temas estiveram fortemente presentes nos seus discursos. Realçando que essas serão suas prioridades. A questão é saber quais os caminhos para alcançar tais objetivos e quais os obstáculos.
Será impossível alcançá-los plenamente se forem mantidas a polarização e a divisão do país. A ideia de uma ampla frente contra a fome só logrará êxito se vier acompanhada de um amplíssimo entendimento nacional com vistas à reunificação. Lula deu indicativos de que entende a urgência de pacificar o país, especialmente em seu discurso no parlatório, quando assumiu o compromisso de “governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras” e não apenas para quem votou nele. O presidente acerta ainda ao afirmar: “a ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia”.
São palavras dignas de elogios, embora estejam em contradição com o tom de polarização do seu discurso no Congresso, quando a marca não foi a pregação da união de todos os brasileiros. Ali suas palavras pareciam ter se voltado para os 51% que o elegeram e não para o conjunto da nação. Não foi a primeira vez que Lula fez dois discursos distintos em tão pouco tempo, como se houvesse uma muralha da China entre eles. Isso já tinha acontecido no dia da sua vitória eleitoral.
Como o momento é de acentuar convergências, impõe-se valorizar suas palavras em prol da pacificação, na esperança de que haja correspondência entre a intenção e o gesto, entre o discurso e a prática.
A festa no dia da posse e o mar de gente presente não elude o fato de que o Brasil se encontra hoje tão dividido quanto saiu das urnas. É como se nada tivesse mudado, conforme indica a mais recente pesquisa do Datafolha. Segundo o levantamento, para 51% dos brasileiros Lula fará um governo melhor que o de Bolsonaro. Ou seja, quase o mesmo percentual de sua eleição, quando obteve 50,9% dos votos, contra os 49,1% de Bolsonaro.
É a expectativa mais baixa entre os presidentes eleitos em seu primeiro mandato, desde a redemocratização do país. Collor assumiu com 71% de previsão positiva, praticamente o mesmo padrão de Fernando Henrique Cardoso, com 70%. Lula, quando se elegeu em 2002, tinha expectativa positiva de 76% da população, a mais alta da série histórica, enquanto a de Dilma era de 73%. Mesmo Bolsonaro, eleito em um país já dividido, assumiu seu mandado com uma expectativa positiva de 65%.
São números sobre os quais Lula deveria se debruçar para estabelecer a estratégia adequada com vistas à superação da divisão do Brasil praticamente ao meio. Deveria ainda observar que, com todos os problemas de sua gestão, caracterizada pelo novo presidente como “herança maldita” no seu discurso no Congresso, Bolsonaro conclui seu governo com 39% de aprovação, maior do que a desaprovação ao seu governo.
Vinte anos depois de ter assumido a presidência pela primeira vez, Lula agora encontra o país numa conjuntura completamente diferente, interna e internacionalmente. Em vez do super boom das commodities do início do século, enfrentará uma situação na qual a economia mundial está à beira de uma recessão ou de uma estagflação, como já avaliam alguns especialistas.
Internamente está contratada uma crise fiscal com a expansão dos gastos públicos, com poder de impactos na dívida pública, nos juros e na inflação. Em outras palavras, pode comprometer a atividade econômica e a geração de empregos.
O cenário político está longe de ser um céu de brigadeiro. Apesar de ter constituído um governo de uma frente democrática bem além do PT, não terá vida fácil no Parlamento. Em vez de enfrentar uma oposição civilizada, enfrentará a oposição selvagem da bancada bolsonarista turbinada pelas urnas.
Diante desse quadro, o sucesso de seu governo dependerá em muito de lograr êxito na pacificação do país. A união dos brasileiros deveria estar no centro de sua estratégia, tão importante quando o combate à miséria e à defesa da democracia.
Para sua promessa de governar para todos os brasileiros não ser um exercício retórica, deveria desde já, estabelecer pontes com os 49,1% dos eleitores de Bolsonaro. Isso requer grandeza e generosidade para reconhecer a legitimidade de suas posições, como expressão de valores conservadores enraizados na sociedade, entre os quais a defesa da família, o empreendedorismo e o anseio de prosperar na vida. O maior erro seria colocar esse enorme contingente no discurso do golpismo e do fascismo.
A estratégia mais inteligente não é ficar com os olhos fixos no retrovisor. O desafio é olhar para a frente. O discurso da “herança maldita” como escudo para críticas que virão quando as dificuldades de governar falarem mais alto tem fôlego curto. Até por pragmatismo, Lula deveria se empenhar na costura da pacificação da nação.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 4/1/2023.