O alerta que vem do Chile

Cinquenta anos após o golpe do general Augusto Pinochet, a ultradireita chilena provoca um novo abalo sísmico nos Andes. Desta vez pela via do voto. O Partido Republicano de José Antônio Kast obteve uma vitória acachapante na eleição dos 51 membros do Conselho que irá elaborar a nova Constituição. Depois do porre do primeiro processo constituinte, a esquerda do Chile amarga agora enorme ressaca.

O primeiro a perceber a mudança dos ventos foi o presidente Gabriel Boric quando 62% dos chilenos disseram não no plebiscito da constituição. Boric iniciou, então, uma inflexão para o centro, absorvendo bandeiras das quais a esquerda tradicionalmente é avessa, como a questão do combate à violência. Se mostrou como uma esquerda arejada, capaz de condenar ditaduras de esquerda e de adotar um programa de segurança aprovado por 80% dos chilenos.

Agora terá de se reinventar para não virar um pato manco durante o restante de seu mandato. Uma leitura apressada da vitória esmagadora da direita radical pode levar à conclusão errônea de que foi uma decorrência da guinada de Boric para o centro.

As causas foram outras. Entre elas o anseio dos chilenos por estabilidade, segurança, bem como sua insatisfação com as imigrações desordenadas de venezuelanos e peruanos, bandeiras que a extrema-direita soube capturar com competência. Os chilenos vivem um cansaço com a exacerbação da agenda identitária e do clima de convulsão social do “estalido” de 2019. Em vez da euforia do processo eleitoral da primeira constituinte, a eleição do último domingo se deu em clima de apatia.

A fatura da derrota deve ser cobrada da esquerda identitária, atrasada e radical. Foi ela que deu a vitória para a extrema-direita.

O Chile não é um caso isolado. Depois da onda rosa responsável por levar a esquerda ao poder no México, Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Bolívia e Brasil, o pêndulo da América Latina movimenta-se para a direita por erros da própria esquerda. Os governos da onda rosa enfrentam crises de governabilidade, sem maiorias no Parlamento (casos do Brasil, Chile e Colômbia), de graves problemas de segurança (Argentina e Chile), de convulsão social (Peru) ou de insolvência para fazer frente aos seus compromissos internacionais, como acontece com Argentina e Bolívia.

Esse caldo de cultura é terreno fértil para a extrema-direita do continente. A Argentina, com eleição presidencial marcada para outubro, pode ser a bola da vez. Com inflação a mais 100% ao ano, o peso argentino se derretendo como sorvete ao sol e a violência crescendo em escala exponencial, a eleição pode ser um novo “que se van a todos”, por meio de uma vitória do ultrarradical Javier Milei, o “Bolsonaro portenho”.

Diante desse quadro, a esquerda latino-americana se encontra numa encruzilhada sobre a estratégia a seguir. Sem maioria no parlamento e com a aprovação do seu governo despencando, Gustavo Petro, presidente da Colômbia, deu um cavalo de pau na sua política de alianças. Pôs fim ao governo de frente ampla, substituindo-o por um governo “puro-sangue” de esquerda. Com isso aumentou a crise de governabilidade e suas dificuldades no Parlamento.

E Lula, entre Boric e Petro, que caminho seguirá?

Sem maioria no Congresso, com uma forte oposição no parlamento e tendo ainda um país dividido ao meio, o mais recomendável seria a adoção de uma estratégia defensiva. A ideia de avançar o sinal, como defendem setores mais à esquerda do Partido de Trabalhadores ou mesmo como se comporta o presidente, tem tudo para provocar um desastre.

Assim, o mais recomendável seria focar naquilo que une os brasileiros, deixando de lado o que nos divide. Claramente suas prioridades deveriam ser a aprovação do novo arcabouço fiscal, da reforma tributária e a defesa da democracia. É possível construir um amplo consenso em torno dessas três questões. Mas Lula só faz um governo de frente ampla na repartição do butim ministerial (muito embora o filé mignon dos ministérios seja propriedade exclusiva do PT). No programa levado à prática, é um governo petista “puro-sangue”.

Imbuído de um furor revisionista, o presidente alterou por decreto o marco regulatório do saneamento, sofrendo, em razão disso, uma dura derrota no Parlamento. Ataca a autonomia do Banco Central e a meta inflacionária, quer reestatizar a Eletrobrás e anuncia que em seu governo nenhuma empresa estatal será privatizada. Sem falar nas incursões contra a reforma trabalhista concretizada pelo Congresso Nacional no governo Temer. Cede a pressões corporativistas ao suspender o Novo Ensino Médio.

Na política, não estabeleceu pontes com o agronegócio e com os evangélicos, dois setores com peso na sociedade e que não podem ser ignorados. Impossível construir maioria no Congresso sem dialogar com essas bancadas.

Não sem razão o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), mandou recado ao governo ao afirmar que o Congresso vai brigar para que não haja retrocessos em assuntos aprovados no passado. A declaração acontece justamente após os deputados derrubarem as mudanças propostas por Lula no marco do saneamento e em meio a questionamento do governo sobre a privatização da Eletrobras. “A principal reforma que o Congresso brasileiro vai ter que brigar diariamente é a reforma de não deixar retroceder tudo o que já foi aprovado no Brasil no sentido da amplitude do que é liberal”, disse Lira.

Lula também dificulta a própria governabilidade ao não conter a pressão dos setores mais à esquerda do seu partido ou de movimentos sociais, como o MST, que se comportam ao arrepio da lei e estigmatizam um setor tão estratégico para o país, o do agronegócio.

Em vez de construir consensos gera dissensos na política externa. A posição em relação à guerra da Ucrânia e a promessa de socorrer a Argentina com vistas a salvar eleitoralmente o peronismo não são pontos pactuados de uma verdadeira frente ampla. Pode até ser uma agenda da esquerda, mas não é a do país.

O Andes deu o alerta. O sinal amarelo está aceso. Se Lula não entender a movimentação do pêndulo da América Latina, pavimentará o caminho para o Brasil ser o Chile amanhã, com o retorno do bolsonarismo ao poder.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 10/5/2023.

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