Maravilhosa Madeleine Peyroux

Quem perdeu Madeleine Peyroux no Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte e São Paulo tem a chance de vê-la em Bay Harbor, Michigan, daqui a duas semanas – mas é bom comprar ingresso logo, porque o Great Lake Center for the Arts tem capacidade para apenas 525 pessoas. Bem, em novembro ela canta no New Jersey Performing Arts Center – Complex, Newark, NJ, e logo em seguida em Richmond, Virginia.

Depois disso, só em março de 2024, quando ela volta à estrada, primeiro em Los Angeles e depois Solana Beach, CA. Em maio fará duas apresentações do outro lado do país, no Sony Hall de Nova York, com capacidade para mil pessoas.

Haveria vários jeitos de começar um texto depois de ver nesta quinta-feira, 4/10, o show de Madeleine Peyroux ali no Teatro Bradesco, no Shopping Bourbon, mas achei esse aí gostoso. Meio fresco, meio metido a besta, é verdade, mas engraçadinho, brincalhão.

E taí: fresco e metido a besta são conceitos que jamais poderiam ser aplicados a essa jovem senhora de 49 anos, um dos timbres de voz mais doces, suaves, envolventes de que se tem notícia, uma dezena de álbuns gravados, uma sólida carreira iniciada com inspiração nos cantores de rua de Paris, onde morou na adolescência com a mãe recém-divorciada, e fartos e generosos elogios da crítica, que há décadas a compara a ninguém menos que a grande diva Billie Holiday.

Madeleine Peyroux no palco é a anti-frescura condensada, a anti-metideza elevada à milésima potência. A moça solta faíscas de simpatia, de bom humor, de pura alegria de viver. Esforça-se para falar a língua dos nativos – e, diacho, fala muito bem.

Fiquei pensando em qual seria o adjetivo mais adequado para o jeito simples, despojado, danado de simpático de Madeleine se apresentar. Pensei muito em moleque, molequinha. Também me ocorreu brejeira.

Ladies and gentlemen, essa moça incensada, admirada mundo afora  como uma das grandes vozes do jazz – embora. além do jazz clássico, cante também blues, folk, um tanto de pop, e canções de sua própria autoria – se apresenta com a simplicidade e a alegria brejeira de uma molequinha.

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A simpatia, a simplicidade, a brejeirice de Madeleine Peyroux foi uma das três características mais marcantes, na minha opinião, do show que ela apresentou em seis cidades brasileiras. As outras duas foram o extraordinário talento dos músicos que a acompanham e a escolha das músicas, a formação da setlist.

A turnê tem o nome de The Best of Madeleine Peyroux – mas, diacho, a setlist tinha mais canções que eu desconhecia do que as que eu identifiquei de cara. E – repito o “diacho” – sou fã da moça faz tempo. Sou fã da moça desde o tempo em que existia um troço antigo – já superado pela técnica de hoje, como diria Horácio Ferrer no tango de Piazzolla feito para Amelita cantar – chamado “disco”. Verdade: fui verificar, e tenho sete dos dez álbuns da discografia dela. (Na foto só aparecem seis porque não consegui imaginar um jeito bom de fotografar um número ímpar de quadrados…)

Aliás, eis aqui a discografia, segundo o site AllMusic:

1 – Dreamland (1996), Atlantic;

2 – Got You on My Mind (2004), Waking Up Music;

3 – Careless Love (2004), Rounder;

4 – Half the Perfect World (2006), New Rounder;

5 – Bare Bones (2009), Rounder;

6 – iTunes Live in London (2009), Universal;

7 – Standing on the Rooftop (2011), Decca/Emarcy/Universal;

8 – The Blue Room (2013), Decca/Emarcy/Universal;

9 – Secular Hymns (2016), Verve;

10 – Anthem (2018), Verve.

Pois bem. A setlist – pelo menos a do show de São Paulo – não incluiu alguns dos grandes sucessos, das canções mais marcantes de sua discografia, como, para citar apenas algumas, “Smile”, “You’re gonna make me lonesome when you go”, “I threw it all away”, “Love in vain”, “La vie en rose”, “I’m gonna sit down and write myself a letter”, “The Summer wind”, “Blue alert”, “Everybody’s talking”, “River”, “Bye bye love”, “Changing all those changes”, “Born to lose”, “Bird on a wire”, “Take these chains from my heart”, “I can’t stop loving you”, “You don’t know me”, “Desperadoes under the eaves”…

Sim, ela cantou – depois de anunciar, em Português, que a canção seguinte se chama “dance comigo até o fim do amor” – a pérola “Dance Me to the End of Love”, de Leonard Cohen. E ligou o clássico em seguida a “Half the Perfect World”, que a cantora Anjani Thomas musicou sobre letra de Cohen, e deu o título do álbum de 2006 de Madeleine.

Sim, teve a centenária “Careless Love”, de autoria daquele tal de Trad, um dos mais prolixos e mais geniais compositores da música popular de todos os tempos; Joan Baez, Bob Dylan, Peter, Paul and Mary, Judy Collins, todos eles adoravam gravar canções de Trad. (Brincadeirinha, tá, gente boa? Trad, obviamente, é como são assinadas as canções tradicionais, de domínio público, sem autor identificado.)

Brincadeirinha à parte, a canção “Careless Love” deu nome ao disco de 2004, que vendeu meio milhão de cópias, um número altíssimo para uma cantora de jazz.

Outra música composta nos anos 1920 foi “There’ll Be Some Changes Made” (Benton Overstreet-Billy Higgins), que ela anunciou como sendo “Haverá mudanças”.

Teve “(Getting Some) Fun Out of Life” (Joseph Burke-Edgar Leslie), “Between the Bars (Elliot Smith), teve a josephinebakeriana “J’ai deux amours” (Géo Koger, Henri Varna, John Murray, Barry Trivers, Vincent Scotto). E a alegrinha “Honey Party”, para a qual ela pediu a ajuda do público para fazer a segunda voz no estribilho. O público, é claro, adorou e cantou junto.

Corajosa, segura de si, apresentou também três composições dela mesma, a serem lançadas em seu próximo álbum, previsto para meados de 2024. Digo “corajosa” com tranquilidade, porque obviamente não é nada fácil para um artista apresentar em um show em país estrangeiro, de língua bárbara, músicas novas, inéditas, desconhecidas. O caminho mais fácil, mais seguro, é, naturalmente, repetir o que com certeza é conhecido, o que o público reconhecerá de cara e adorará ouvir de novo.

Pois então: uma setlist com alguns sucessos conhecidos – mas muitas canções menos badaladas, mais estranhas para platéias estrangeiras de língua não-inglesa, e até mesmo três canções inéditas. Acho que consegui justificar minha afirmação de que a setlist é uma das características marcantes do show.

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Madeleine Peyroux veio ao Brasil acompanhada por um trio. Nada de uma banda com uma dezena, uma dúzia de músicos. Não – um trio. Um trio básico, como no jazz, como na bossa nova. Piano, baixo, bateria. Que nem o Tamba Trio, o Zimbo Trio, o Oscar Peterson Trio.

Meu, que trio!

Andy Ezrin no piano e nos teclados, Barak Mori no baixo, Graham Hawthorne na bateria.

Todos eles senhores. Nenhum garoto ali. Senhores ali na faixa dos 50. Talvez o baterista, o mais jovem, esteja nos 40; pode ser.

Experientes, tarimbados – virtuoses, os três. E, embora não tenham estado nos discos da cantora, que eu saiba, dão a impressão de que a acompanham há décadas. Entendem-se com perfeição, como casais com mais de 30 anos se entendem sem precisar falar nada, sequer gesticular.

Impressionante.

Desde a primeira música, Madeleine abriu espaço para um pequeno solo de cada um dos três músicos (exatamente como se fazia na MPB influenciada pela bossa nova nos anos 1960).

E o público a-do-rou. De cara. Instantaneamente.

O público. É preciso fazer um registro sobre o público. De sua própria maneira, o público que foi ver Madeleine no Teatro Bradesco foi também impressionante.

Pra começo de conversa, um público bem brasileiro, no pior sentido possível, no sentido de pouco civilizado. Às 20h50, uma voz informando que faltavam 10 minutos para o início do espetáculo, quase metade dos 1.400 lugares ainda estava desocupada. Por que diabos entrar no teatro faltando, digamos, uns 20 minutos, com tempo de procurar sem atropelos o seu lugar, fazer as pessoas da sua fileira se levantarem para dar passagem, se você pode ficar até o último minuto conversando, comendo e bebendo no hall de entrada?

Um público bem variado. Mary e eu achamos interessante isso. Não apenas senhorinhas e senhorzinhos de mais de 50, como seria de se esperar para um recital de cantora de jazz. Muita, mas muita gente ali na faixa dos 30 e dos 40 também.

E um público barulhento. Barulhento, irrequieto – quase como se fosse um show de rock. Muitas palmas, assobios e urros no meio das canções, após cada pequeno solo instrumental. Muitas palmas, assobios e urros antes que os músicos concluíssem a apresentação das canções. Bastava Madeleine parar de cantar e lá vinham palmas, assobios e urros. Confesso que me senti um tanto envergonhado por isso – mas Madeleine, ao final de seu último show brasileiro desta turnê, sua terceira por aqui, fez os maiores elogios às platéias tupiniquins.

E um detalhe: muitos urros femininos. Na verdade, os urros eram predominantemente femininos. Houve momentos em que me senti como em um show de Simone no Ginásio do Ibirapuera, ali pelos anos 80, em que parte da platéia feminina parecia estar gozando nas arquibancadas.

Nada contra as mulheres, nada contra as gays, nada contra o gozo. Apenas registrei o que vi e ouvi.

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E para o bis?

Para o bis, é claro que Madeleine Peyroux havia preparado dois de seus maiores sucessos, certo?

A moça é surpreendente. Para o bis, depois que quase mil e quinhentos brasileiros a haviam aplaudido de pé, a moça de Athens, interior da Georgia on My Mind, foi de “Corcovado”. “Corcovado”, tá? Não “Quiet nighs of quiet stars”, letra de Gene Lees – “”Quiet nights of quiet stars / Quiet chords from my guitar / Floating on the silence that surrounds us / Quiet thoughts and quiet Dreams / Quiet walks by quiet streams / And a window that looks out on Corcovado / Oh, how lovely”.

Madeleine atacou de “Corcovado”, música e letra de Tom Jobim, letra nesta língua bárbara, danada – danada de bela: “E eu que era triste / Descrente deste mundo / Ao encontrar você, eu conheci / O que é felicidade, meu amor.”

A brasileirada, a brazucada ainda queria mais?

Mrs. Peyroux and Mrs. Andy Ezrin, Barak Mori and Graham Hawthorne then closed the show with “Água de beber”, by Antonio Carlos Jobim and Vinicius de Moraes. “Eu nunca fiz coisa tão certa, entrei pra escola do perdão / A minha casa vive aberta, abri todas as portas do coração / Água de beber, água de beber camará, água de beber, água de beber camará / Água de beber, água de beber camará”.

Ah, sim. Mrs. Peyroux vestia calça comprida de tecido fino, uma legging, blusa de malha solta, um camisão bem solto por cima e, mais por cima ainda, uma echarpe grandona, vistosa. Como se estivesse indo jantar na casa de uma velha amiga querida, sem qualquer tipo de cerimônia.

Não seria nada estranhar se, em bolso traseiro da calça, estivesse carregando um bodoque. Ah, perdão aos não mineiros. Um estilingue.

Maravilhosa Madeleine Peyroux.

5/10/2023

2 Comentários para “Maravilhosa Madeleine Peyroux”

  1. My God Sérgio, texto espetacular, rico em detalhes e curiosidades. Isso que eu chamo de um verdadeiro trabalho de repórter! Você deu a ficha completa da moça, alem de transmitir suas impressões e as expressões dela.
    Adorei as informações de campo. Hoje sei mais dela do que do meu querido Frank Zappa. Rsrs

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