Sem as cotas raciais, retrocesso à vista

A Suprema Corte dos Estados Unidos reabriu o debate sobre as cotas raciais ao contrariar sua jurisprudência anterior e considerá-las inconstitucional. A guinada veio na esteira da onda de retrocessos civilizatórios patrocinada pela Corte. As cotas raciais como política afirmativa foram instituídas nos Estados Unidos nos meados dos anos 60, como uma conquista de uma árdua luta pelos direitos civis, nas quais se projetaram a obstinação do Rosa Parks e a determinação de Martin Luther King.

Significou importante avanço no sentido de reparar uma injustiça histórica da segregação racial oriunda dos tempos da escravidão. A história americana é marcada por conflitos raciais, em uma sociedade onde o racismo estrutural foi legalizado no período de 1877 a meados de 1960. Fazem parte desta triste página as “Leis Jim Crow” da virada do século 19 para o século 20, que impuseram a segregação racial e a supremacia branca.

Também por massacres como o de Tulsa, em Oklahoma onde, em 1921, mais de mil casas e estabelecimentos da classe média negra emergente foram queimadas e destruídas por supremacistas brancos. Sem falar no domingo sangrento, em Selma, onde a marcha de manifestante negros foi interrompida pela ação extremamente violenta da polícia. Muito sangue foi derramado e mais de um milhão de pessoas marcharam em Washington para finalmente os negros conquistarem uma política afirmativa que lhes abriu as portas das universidades.

A decisão da Suprema Corte americana reabre velhas feridas e dá um enorme passo para trás nos direitos civis. Sem as cotas, Michele Obama não teria ingressado na disputadíssima Universidade de Harvard, como ela mesmo fez questão de publicamente registrar, ao fazer uma defesa apaixonada dessa política: ”Não há dúvidas de que o projeto de ações afirmativas ajudou a oferecer novas oportunidades para aqueles a que, ao longo da história, tem sido negada a oportunidade de mostrar o quão alto podem subir”.

Esse é o ponto mais importante das políticas públicas baseadas na discriminação positiva, a promoção da equidade. Só por meio da oferta de oportunidades iguais pode-se pensar na meritocracia como critério justo. Até onde cada um pode chegar só é possível saber se lhe foram oferecidas oportunidades para tal.

No Brasil, o debate sobre cotas raciais está pacificado desde a histórica decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de abril de 2012, de rechaçar ação que contestava sua constitucionalidade. No entendimento dos ministros, tal política propiciava “um ambiente acadêmico plural e diversificado, e tinha por objetivo superar distorções sociais historicamente consolidadas”.

No ano seguinte o Congresso Nacional, após 13 anos de debates, aprovou a lei das cotas sociais, possibilitando sua disseminação pelo sistema público do ensino superior. Dez anos depois da aprovação da lei, já há evidências científicas sobre os benefícios dessas ações afirmativas. Havia o temor, por parte de quem se opunha à sua adoção, de que a inclusão de pretos, pobres e pardos derrubasse o nível acadêmico.

A previsão catastrofista não se confirmou. Pesquisa pioneira da Unesp com todos os ingressantes entre 2014 e 2018 não viu diferença significativa de desempenho entre cotistas e não cotistas. As cotas raciais mudaram a cara das universidades públicas, deixando-a mais parecida com a dos brasileiros. Segundo dados do IBGE de 2020, 50,3% dos estudantes brasileiros se declararam pretos ou pardos. E as mulheres negras se tornaram o maior grupo nas universidades públicas.

A partir de dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), os pesquisadores Ana Luiza Matos de Oliveira, professora da Flacso, e Arthur Welle, doutorando da Unicamp, apontam que as mulheres negras representavam 27% dos estudantes do ensino superior público em 2019 (edição mais recente da pesquisa). Esse resultado é um avanço significativo se comparado ao início dos anos 2.000, quando as mulheres negras somavam apenas 19% do total de universitários dessas instituições, ficando bem atrás das mulheres (38%) e dos homens brancos (30%), e ficando à frente somente dos homens negros (13%), que, ainda hoje, são a minoria (23%).

Os números estão alinhados com o impacto positivo das cotas raciais nos Estados Unidos, onde elas aumentaram a diversidade nas universidades americanas em 57%. E possibilitaram, ao longo das décadas, uma expressiva expansão da classe média americana. É previsível que o mesmo aconteça no Brasil, ao longo do tempo.

Políticas afirmativas promotoras da equidade não eliminam a necessidade de uma profunda melhora da qualidade do ensino básico. Esse continua sendo o grande desafio e exige políticas específicas para tal, entre elas o Novo Ensino Médio. Mas a busca desse objetivo não pode ser usada como pretexto para o descarte das cotas raciais. O ensino de qualidade não elimina a importância da política de cotas como promotora da justiça social e reparadora de injustiças históricas. Os Estados Unidos têm um bom sistema de ensino básico, mas adotaram as cotas raciais por uma questão de justiça social.

Se agora estão abrindo mão de uma política responsável por tornar suas universidades mais plural e diversa não foi porque as cotas já não fazem mais sentido. Foi porque a América, desde 2016, foi varrida por uma onda distópica, demolidora de valores como solidariedade e justiça social.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 12/7/2023. 

 

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