Campeão das liberdades

“Rejeito doutrinas de poder arbitrário. Abomino ditaduras de todo o tipo, militares ou científicas. Coroadas ou populares. Detesto estados de sítio, suspensões de garantias, razões de Estado e leis de segurança pública.”

A frase bem poderia ser atribuída a Ulysses Guimarães, tal a semelhança com seu discurso na promulgação da Constituição-Cidadã de 1988, no qual o Senhor Diretas disse sentir nojo de ditaduras. Mas seu autor é outro cavaleiro solitário e um dos maiores nomes de nossa história republicana: Rui Barbosa. E foi pronunciada no lançamento da plataforma de sua candidatura civilista, em 1910, tão ousada quanto a anticandidatura de Ulysses em 1974.

Cem anos após a sua morte, completados neste mês de março, seu legado volta a ser ressignificado até como antídoto à vaga antiliberal e autoritária que no Brasil gerou o 8 de janeiro. Seu pensamento permeia a moderna história brasileira. Foi nessa fonte que beberam os liberais e socialistas da Terceira República, responsáveis pelos avanços da Constituição de 1945, uma das mais democráticas de nossa história. E na primeira Constituição da República, de 1891, estão as impressões digitais de Rui como um dos coautores e revisor.

O compromisso com a democracia e a separação dos poderes. O federalismo, a defesa dos direitos individuais, o primado do poder civil, do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição e o império da lei conformam sua doutrina e vão servir de alicerces para o surgimento do liberalismo político no Brasil, como uma corrente representativa das aspirações de uma incipiente classe média.

As disjuntivas estado centralizado/federalismo e liberalismo político/positivismo conformam dois projetos políticos distintos nos primórdios da República. A República imaginada por Rui Barbosa se espelhava na democracia americana, pautada em um federalismo forte, na separação dos poderes e nas liberdades individuais. Os governos dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto vão em outra direção. Instituem a chamada “República da Espada”, influenciados pela visão positivista de que o Brasil só alcançaria o progresso por meio de uma “ditadura benéfica”.

Neste modelo, os militares desempenhariam o papel “moderador” e de “guardião” da Constituição, o que levaria a várias intervenções e quarteladas ao longo do século 20. Qualquer semelhança com a interpretação do bolsonarismo e de correntes autoritárias brasileiras do artigo 142 da atual Constituição não é mera coincidência.  O florianismo, como corrente política, via os adversários como inimigos da nação a serem destruídos. Em alguns casos, com eliminação física.

Ninguém se opôs mais ao “florianismo” do que Rui Barbosa. Pagou preço alto por isso após a renúncia de Deodoro da Fonseca, uma vez que a Constituição determinava a convocação de nova eleição. Redator-chefe do Jornal do Brasil, Rui foi acusado por Floriano Peixoto de ser mentor da Segunda Revolta da Armada por ter publicado artigo do contra-almirante Custódio de Melo. O Jornal foi empastelado pelo governo e Rui teve de se exilar para não ser preso. Só voltou ao Brasil quando Prudente de Morais se tornou o terceiro presidente do Brasil.

Rui foi senador por cinco mandatos. Era jornalista e sem dúvida um dos maiores juristas do Brasil, além de, como diplomata, ter projetado o Brasil para o mundo na Conferência de Paz de Haia. Aquele pequeno-grande homem se impôs às grandes potências, fazendo valer os direitos das outras nações. Rui foi um ser humano épico e, como tal, escreveu belas páginas da história.

Entre elas a campanha civilista de 1910, quando enfrentou nas urnas o marechal Hermes da Fonseca. Naquela república das oligarquias eleição se resolvia antecipadamente, como um jogo de cartas marcadas. Não havia campanha eleitoral, no máximo banquete com discurso enfadonho do ungido pelas oligarquias. Entendendo que a candidatura do marechal Hermes – sobrinho de Deodoro da Fonseca – seria o retorno do “florianismo”, resolveu inovar, trazendo para o Brasil a experiência das campanhas presidenciais americanas.

Andava nas ruas, apertava as mãos de eleitores, distribuía sua propaganda, viajava de trem e parava em cada estação para fazer discurso. Aquele “Dom Quixote” chamou a atenção da imprensa, que, pela primeira vez na história do país, passou a cobrir uma eleição.

Não ganhou, mas bagunçou o coreto das cartas marcadas. Naquele país predominantemente agrário, de uma população majoritariamente analfabeta sem direito a voto e de poderes oligárquicos, as ideias de Rui estavam bem à frente do seu tempo.

Voltaria a ser candidato em 1919. De novo perdeu, mas deixou plantada a semente de que a política e os quarteis não devem se misturar. Em tom de desabafo, vociferou: “até maluco se elege presidente, e eu não consigo!”, numa alusão a Delfim Moreira.

Quando faleceu, um jornal deu como manchete “O sol apagou”. Mas sua estrela continua a brilhar, nos iluminando com sua sentença: “com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação. Este deveria ser o programa da República”.

Rui fez jus a ser chamado por vários títulos honrosos, entre eles o de “Águia de Haia”. Mas talvez o que mais tenha sintetizado seu papel na história foi o de “Campeão das liberdades”.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 8/3/2023. 

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