Bem-vindo a Lulanaro

Nos meados dos anos 70, o economista Edmar Bacha descreveu um país fictício chamado “Belíndia” para explicar a existência de dois Brasis. Um com alto padrão de vida e do tamanho da Bélgica e outro com condições sociais e extensão territorial similar à da Índia, então um dos países mais miseráveis do mundo.

Cinquenta anos depois, Thomas Traumann e Felipe Nunes, autores do livro Biografia do Abismo, lançado nesta semana pela editora HarperCollins, nos apresenta um país chamado Lulanaro. O nome é autoexplicativo. Trata-se da divisão do Brasil praticamente ao meio por duas lideranças populares, Lula e Bolsonaro, como ficou evidente na última eleição presidencial.

Não que a polarização seja uma grande novidade no planeta. A recente eleição polarizada e dividida na Argentina que o diga. E em vários países os exemplos se multiplicam. Talvez porque as mudanças radicais em curso gritam por melhores interpretações da realidade. A geopolítica, os avanços da tecnologia, em especial a inteligência artificial, ou mesmo as questões que envolvem energia e o meio ambiente, são exemplos de profundas transformações que têm deixado governos e pessoas atônitas, presas a bolhas apocalípticas.

Biografia do Abismo, baseado em evidências reveladas em 27 rodadas de pesquisas da Genial/Quaest, se propõe a ser o estudo mais completo sobre a divisão do Brasil. É leitura obrigatória para quem quiser entender o país que saiu das urnas em 2018, cuja polarização extrema se calcificou a partir da disputa presidencial de 2022.

O eixo da análise dos autores é o processo de transbordamento da polarização da esfera política para o social e o afetivo. Em outras palavras, transferiu-se para o cotidiano das pessoas, estando presente em todos os cantos da sociedade. Na família, na escola, nas igrejas, nas artes, no trabalho, na escolha sobre onde se informar.  Também nas relações de amizades e de convívio social. Esse fenômeno é definido como calcificação da polarização, com visões de mundo cristalizadas e antagônicas.

Nesse processo acontece também outro fenômeno, o da “bolhificação”, com as pessoas vivendo em bolhas. Elas estabelecem contatos “apenas com quem pensa de forma similar sobre política” e comunga dos mesmo valores e códigos morais. Isso cria a ilusão de “que todos pensam como elas e aprovam suas atitudes”. Mesmo as mais absurdas, como a de que a eleição foi fraudada, a intentona golpista de 8 de janeiro foi legítima e – por que não? – que a T|erra é plana.

Mais do que divergências políticas, são visões de mundo contrapostas e impermeáveis. Isso explica a razão pela qual a aprovação ou a reprovação dos governos sofrem variações insignificantes ao longo do tempo. Isso aconteceu no governo Bolsonaro e acontece no governo Lula, com o presidente mantendo, por um ano, o mesmo índice de aprovação (38%) e sendo desaprovado por cerca de 30%.

Essa imutabilidade se reproduz na disputa no Parlamento. Na eleição do Senado, Rodrigo Pacheco obteve 49 votos e Rogério Marinho, candidato do bloco bolsonarista, 31 votos. Esses números praticamente se reproduziram na votação do nome de Flávio Dino para o STF: 47 senadores votaram a favor e 31 contra.

De fato, as águas não se movem. Em dezembro de 2022 o Datafolha encontrou 32% de petistas e 25% de bolsonaristas. A mesma pesquisa foi realizada agora e os números foram praticamente os mesmos: 30% de petistas e 25% de bolsonaristas. Notem, o quadro continua congelado, apesar de os indicadores econômicos e sociais – crescimento da economia, queda da inflação, dos juros e do desemprego – estarem mais confortáveis do que o ano passado. Teoricamente esse fenômeno favorece o governo, mas os índices de Lula e do PT permanecem os mesmos de um ano atrás.

Não há, portanto, espaço para a conciliação, embora seja necessária e não se possa abrir mão de sua pregação. Menos ainda para gestos civilizados. Quem os pratica é tratado como traidor, condição na qual está Sérgio Moro por causa da troca de abraços com Flávio Dino na sessão em que o Senado aprovou o nome do ministro da Justiça para a Suprema Corte.

A polarização não é uma novidade na História do Brasil. O próprio livro relembra algumas. Getulistas e antigetulistas dos anos 40/50, os tempos de João Goulart e mais recentemente entre PT e PSDB. Excetuando-se o período da ditadura militar, a polarização não visava à eliminação do lado oposto e era possível um certo grau de convivência.

A grande diferença da polarização calcificada é que nela a identidade nacional dá lugar à identidade de grupo, a um sentimento de pertencimento a esse ou aquele campo. Como descreve a Biografia do Abismo: “A disputa passou a ser sobre a forma como cada lado enxerga o mundo, como quer que os próprios filhos sejam criados, quais lugares deve frequentar, que estilos de música ouvir, que roupa usar, em que escola estudar. A disputa política deixou de ser apenas um ato político e passou a ser um ato identitário, presente no cotidiano do consumo, no estilo de vida, hábitos e escolhas”.

Há números para confirmar essa conclusão: “Em dezembro de 2021 Pesquisa Genial/Quaest mostrou que 9% dos brasileiros se sentiriam mal se seu filho ou filha se casasse com alguém cuja família apoia ou vota em candidato diferente. Um ano depois esse número alcançou 25% da população. No mesmo período passou de 10% para 30% o número de brasileiros que decidem seu canal de TV para assistir noticiário político convergente com seus ideais”. A Globo, quem diria, passou a ser o canal na qual os eleitores do PT se informam, enquanto os bolsonaristas preferem a Record e a Jovem Pan.

O engessamento da radicalização extrema e generalizada se retroalimenta através estratégia das duas lideranças populares. Pela primeira vez na nossa História, o Brasil tem uma liderança de extrema direita com base de massas, o que é um ingrediente a colocar mais lenha na fogueira.

Seria exaustivo rememorar todas as trocas de xingamentos entre Bolsonaro e Lula, com o objetivo de insuflar suas bases e tencioná-las. Fiquemos apenas na última sexta-feira, quando Lula xingou Bolsonaro de “furacão do mal”, de gente ruim e de não ter vergonha na cara, além de acusá-lo de usar a fé dos evangélicos e tratá-lo como “aquela coisa.”

Bolsonaro também não deixou por menos. Comparou Lula a Fidel Castro. Insinuou que o presidente é comunista, a favor da liberação do aborto e da maconha, além de ser contra a propriedade privada.

Nessa rinha de briga de galos só nos resta concordar com os autores da Biografia do Abismo: Bem-vindo ao Lulanaro. Nele, “a política vira uma espécie de mundo subatômico ou euclidiano, onde é muito fácil que a parte seja maior que o todo ou que dois objetos estejam no mesmo lugar. Numa sociedade calcificada perde sentido o cálculo aritmético de dois mais dois.”

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 21/12/2023. 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *