Quando garoto, no Guabirotuba, o bairro da Zona Sul de Curitiba em que vivia, Amundsen era bonito como um James Dean. Manteve a faccia bella ao longo de toda a vida, mas, sobretudo, guardou sempre uma rebeldia que fazia lembrar a de Jim Stark, o personagem do ator em Rebel Without a Cause, um dos três únicos filmes que o eterno símbolo da juventude rebelde fez na vida, antes de se despedaçar numa batida de seu Porsche em altíssima velocidade.
Um jovem rebelde. Para mim, essas são as duas características básicas que acompanharam Amundsen ao longo da vida – juventude e rebeldia.
Quando nos conhecemos, no Guabirotuba, onde morei durante dois anos, entre Belo Horizonte e São Paulo, eu tinha 15 e ele 12 anos. Velhos, gostávamos de nos chamar de Wood & Stock, como os personagens de Angeli. Nos tempos do Guabirotuba, eu também tinha lá minhas rebeldias, como absolutamente todos os jovens têm que ter. Na época em que éramos Wood & Stock, eu já era um velhinho manso, tranquilo, apaziguado. Com muitas das velhas crenças de sempre, é verdade – mas muito mais afeito a uma poltrona que a uma moto veloz.
Amundsen, muito ao contrário, manteve intacto seu não-conformismo, sua rebeldia à la não propriamente Jim Stark, que aquele era um babaca, mas à la o Billy de Dennis Hopper no Easy Rider.
Há um monte de ditos, de frases do bom senso, que falam sobre o efeito do passar dos anos sobre as pessoas. A juventude é uma doença que o tempo cura. Comunista aos 20, burguês aos 30.
Amundsen é uma daquelas provas de que toda regra tem exceção. Com ele essa coisa de que o tempo aplaca a rebeldia não funcionava.
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Me ocorreu agora, só agora, neste momento em que finalmente tento escrever sobre Amundsen dias depois que nos despedimos dele na Vila Alpina, que nos meus dois anos em Curitiba só fiz dois amigos que permaneceram para sempre. Um é o Jorge Telles, mineiro de Manhuaçu, criado no Rio, radicado por mero acaso em Curitiba. O outro é o Amundsen, paraibano de João Pessoa – que, além de não perder nunca o espírito da juventude rebelde, jamais perdeu o sotaque arretado, que sempre me fazia lembrar o de Geraldo Vandré. Nem o Zé Nêumanne conseguiu preservar intacto o sotaque paraibano como o Amundsen conseguiu.
Curitiba não é propriamente conhecida como uma cidade que sabe acolher imigrantes. Muito antes ao contrário. Há exceções, como toda regra, e meu irmão Geraldo é uma delas – da mesma forma com que Amundsen é uma exceção da regra de que as pessoas vão ficando menos rebeldes à medida em que o tempo passa, a conta bancária fica melhor, nem que seja um pouco, e o coração da gente fica maior, mais acolhedor, e a mente fica mais calma, ainda que só um pouco, pouquinho.
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Curitiba, de qualquer forma, não tinha muito espaço para o Amundsen à medida em que ele virava adulto, e então, como eu, ele emigrou para São Paulo. Nisso somos parecidos: sou um mineiro (embora nascido em Goiás) que optou por São Paulo para viver, depois de uma passagem forçada por Curitiba. Ele era um paraibano com passagem por Curitiba que se radicou em São Paulo.
Engraçado é que acabamos – cada um com sua história, seu caminho – virando jornalistas. Os adolescentes do Guabirotuba se reviram em assembléias do Sindicato, na Rego Freitas.
Claro, o caminho dele entre Curitiba e São Paulo – bem ao contrário do meu – não foi direto e reto. O cara andou por meio Brasil, teve parada em Manaus, um caso longo com uma manauara.
Mas enfim quietou – geograficamente – na metrópole. Nos vimos e nos falamos e nos gostamos quando eu estava casado com a Suely, com a Regina e depois com a Mary. Mary e eu acompanhamos desde sempre o casamento dele com a Lucia Reggiani – talvez o único porto seguro que ele escolheu na vida. A gente frequentava a casa deles na Rua Guiará quase toda semana; vimos o bebê Pedro crescer, assim como a barriga da Lucia crescer com o que viria a ser o João.
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Me culpo, e muito, por ter me distanciado do Amundsen nos últimos anos.
Abandonei o amigo, essa é que é a verdade dos fatos. Da forma mais vil que poderia haver. Deixei de procurá-lo, de ir atrás.
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Evito sempre olhar para os corpos dos mortos no caixão. No domingo, 17 de dezembro, rompi a tradição, cheguei perto, olhei.
O Pedro estava perto, e chamou nossa atenção para o fato de que, embaixo do blazer elegante, comportado, o corpo do que havia sido o Amundsen estava com uma camiseta que comemorava Woodstock.
Mesmo ali, sem vida, no caixão, Amundsen mantinha seu jeitão de jovem rebelde.
Ah, cara, que os anjos gostem de rock!
19 e 20/12/2023
Ah, a legenda da foto do alto. Da esquerda para a direita, Amundsen, Sérgio meu sobrinho, eu e Aglaia, minha sobrinha.