A vassalagem de Toffoli

Do alto do seu vastíssimo saber jurídico, o mesmo que não foi suficiente para que ele passasse no concurso para a magistratura do Estado de São Paulo, e de sua sabida, proverbial imparcialidade, o ex-assessor jurídico da liderança do PT na Câmara dos Deputados e advogado de Luiz Inácio Lula da Silva nas campanhas presidenciais de 1998, 2002 e 2006 José Antônio Dias Toffoli decidiu invalidar todas as provas originadas no acordo de leniência da Odebrecht, no qual a empresa admitiu crimes e cedeu informações que impulsionaram a Lava-Jato.

O ministro Toffoli chamou a Operação Lava-Jato de “armação” e classificou a condenação e prisão do presidente que o nomeou para o STF como “um dos maiores erros judiciários da História”. Se não bastasse, usou maiúsculas para dizer que a Lava-Jato foi o “PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI e promoveu “verdadeira tortura psicológica” para obter provas contra “inocentes”.

Mais uma vez, é preciso agradecer pela existência da imprensa independente, que está aí para apontar o que é mentira e nos lembrar das verdades obvias, tipo a Terra é redonda, o impeachment de Dilma Rousseff não foi golpe, vacina não transforma ninguém em jacaré e salva vidas, e, sim, houve um gigantesco, monumental esquema de corrupção durante os governos Lula e Dilma envolvendo grandes empreiteiras e empresas estatais, em especial a Petrobrás.

Em artigo no Globo da quinta-feira, 7/9, o dia seguinte à divulgação de um dos mais vexaminosos casos de vassalagem da História, Malu Gaspar escreveu:
“Quem assistiu aos vídeos da delação premiada de Emílio Odebrecht dificilmente conseguirá notar sinais de tortura no sorriso maroto com que o empreiteiro diz que os petistas estavam com ‘boca de crocodilo’ ou ao contar que esteve com Lula no Palácio do Planalto para comunicar que a reforma do sítio de Atibaia seria entregue no prazo prometido.

“Emílio também não parecia estar sofrendo ao dizer que ordenou uma ‘ajuda’ de R$ 2,1 milhões para um filho de Lula montar seu campeonato de futebol americano, porque precisava que o ex-presidente ajudasse Marcelo Odebrecht a melhorar a relação com Dilma Rousseff. Nos registros agora anulados, aliás, Lula foi batizado de ‘amigo’ por Marcelo. Toffoli era o ‘amigo do amigo de meu pai’.”

Em editorial, a Folha de S. Paulo – como havia feito Malu Gaspar – lembra da decisão de Toffoli de 2019 que magoou o líder máximo do partido para o qual trabalhou durante tanto tempo: “Os termos da ordem do magistrado do Supremo Tribunal Federal caberiam num libelo militante, jamais numa manifestação da corte máxima. Toffoli dá mostras de implorar pelo perdão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —em 2019, o ministro inviabilizou a visita do então custodiado Lula ao funeral de seu irmão.”

E crava:

“Exagerou-se na louvação de vingadores no passado. Exagera-se agora na tentativa de apagar as provas consolidadas de corrupção generalizada que foram levantadas pela Lava Jato. Vai-se embora a criança com a água do banho.

“Que não reste dúvida sobre o sinal para o mundo da política. A corrupção na alta administração voltou a ser crime de punição improvável —voltou a ser estimulada.”

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O perdão de Toffoli
Por Malu Gaspar, O Globo, 7/9/2023

Pode-se dizer que a decisão do ministro do Supremo Dias Toffoli que anulou as provas do acordo de leniência da Odebrecht tem origem em janeiro de 2019, quando Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba, pediu autorização para ir a São Bernardo enterrar o irmão Vavá. Toffoli, a quem cabia decidir, passou longas horas em silêncio.

Só quando o caixão já era levado para a cova o ministro permitiu que o ex-presidente se encontrasse com os familiares num quartel próximo. Já era tarde. Lula desistiu da viagem e nunca perdoou Toffoli — a quem ele mesmo havia nomeado para o Supremo em 2009.

Tempos depois, a condenação de Lula foi anulada pelo próprio Supremo, e o petista tornou-se favorito na corrida eleitoral de 2022. Desde então, Toffoli tenta se reaproximar em busca de perdão, mas Lula não quer conversa.

Toffoli, porém, é incansável. Em sua decisão, ele afirma que a prisão de Lula foi um dos “maiores erros judiciários da História do Brasil”, uma “armação”, “fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos”.

Não é um discurso novo, e talvez por isso o ministro tenha julgado necessário caprichar um pouco mais. Chamou a Lava-Jato de “PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI”, assim mesmo, em maiúsculas, e disse que ela promoveu uma “verdadeira tortura psicológica” para obter “provas” contra inocentes.

Quem assistiu aos vídeos da delação premiada de Emílio Odebrecht dificilmente conseguirá notar sinais de tortura no sorriso maroto com que o empreiteiro diz que os petistas estavam com “boca de crocodilo” ou ao contar que esteve com Lula no Palácio do Planalto para comunicar que a reforma do sítio de Atibaia seria entregue no prazo prometido.

Emílio também não parecia estar sofrendo ao dizer que ordenou uma “ajuda” de R$ 2,1 milhões para um filho de Lula montar seu campeonato de futebol americano, porque precisava que o ex-presidente ajudasse Marcelo Odebrecht a melhorar a relação com Dilma Rousseff. Nos registros agora anulados, aliás, Lula foi batizado de “amigo” por Marcelo. Toffoli era o “amigo do amigo de meu pai”.

Nada disso impede, obviamente, que se questionem as provas usadas no acordo da Odebrecht. Só que o argumento do ministro não para de pé. Toffoli diz que a Lava-Jato deveria ter feito um pedido de cooperação internacional para validar as provas — especialmente os softwares de propina com a contabilidade dos mais de R$ 10,6 bilhões distribuídos em 12 países, incluindo o Brasil.

Mas a explicação do próprio Ministério da Justiça incluída na decisão diz que, quando o acordo se dá entre “partes investigadas e autoridades competentes”, com entrega de provas, a cooperação não é necessária. Foi a Odebrecht quem enviou seus advogados à Suécia e à Suíça para recuperar os dados e entregar à Lava-Jato.

Não foi preciso quebrar nenhum sigilo ou acionar autoridade estrangeira. Uma vez no Brasil, um laudo da PF atestou que o material não tinha sido violado — mesmo tendo sido transportado de Curitiba para Brasília num saco de supermercado, como mostraram os diálogos captados na Vaza-Jato pelo hacker Walter Delgatti Neto.

As mensagens do hacker se espalham por toda a decisão de Toffoli. Em algumas de antes da delação, os procuradores comentam contatos que mantiveram com agentes do FBI e da embaixada dos Estados Unidos. Dizem até que era melhor continuar conversando com o FBI porque “o canal era mais direto” — o que, para muita gente, sugere ter havido uma espécie de “tráfico de informações” entre essas autoridades.

Foi para apurar essa suspeita que o antecessor de Toffoli no processo, Ricardo Lewandowski, determinou que a corregedoria do Ministério Público Federal fizesse uma investigação. A sindicância foi feita na gestão do insuspeito Augusto Aras e concluída em 2021, mas acabou arquivada.

O relatório final lista vários tratados internacionais de que o Brasil é signatário prevendo a possibilidade de contatos informais e sigilosos entre autoridades que investigam crimes transnacionais.

De acordo com a corregedoria, ilegal poderia ter sido o uso judicial de extratos bancários e outras provas obtidas no exterior sem a necessária cooperação jurídica — o que não correu. Mas o relatório foi colocado em sigilo e ignorado por Toffoli.

A Vaza-Jato não deixou dúvida de que os procuradores de Curitiba desprezaram ritos legais, cruzaram o balcão para combinar estratégias com o juiz Sergio Moro e demonstraram ter preferências pessoais e políticas que não condiziam com seu papel.

A revelação dos diálogos dizimou a credibilidade da Lava-Jato e foi fundamental para a revisão da condenação de Lula. Compreende-se, ainda, que os ventos da política tenham mudado e que Toffoli queira ser perdoado. Mas nada disso autoriza ignorar o que ocorreu no passado. A menos, é claro, que queiramos ver tudo começar de novo.

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Corrupção estimulada
Editorial, Folha de S. Paulo, 8/9/2023

Havia um padrão nacional nas investigações de corrupção do passado. Policiais e procuradores levantavam indícios de crime e percorriam as etapas iniciais da persecução até que, provocadas por luminares da advocacia, as altas cortes derrubavam tudo.

O processo do mensalão, a evolução dos órgãos de controle e o advento de inovações legais como a delação premiada e o acordo de leniência em meados da década passada mudaram essa perspectiva —ou assim pareceu durante algum tempo, ao menos.

Coloca essa impressão em xeque a sucessão de eventos recentes que convergem para a aniquilação da Operação Lava Jato. Decisões esdrúxulas como a do ministro Dias Toffoli, que na quarta (6) praticamente fulminou o acordo com a Odebrecht, oferecem aos pessimistas o argumento de que aquele padrão do passado não se alterou.

Os termos da ordem do magistrado do Supremo Tribunal Federal caberiam num libelo militante, jamais numa manifestação da corte máxima. Toffoli dá mostras de implorar pelo perdão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —em 2019, o ministro inviabilizou a visita do então custodiado Lula ao funeral de seu irmão.

Essa trajetória errática ilustra o que ocorreu com a institucionalidade brasileira nesse período. Gestos do mesmo Toffoli quando presidente da corte na direção do bolsonarismo, como chamar o golpe de 1964 de “movimento”, compõem essa passagem pouco inspiradora.

A decisão do tribunal constitucional que em 2016 permitiu o cumprimento da prisão após condenação em segunda instância recheou-se de ironias sobre como o sistema carcerário poderia melhorar com a presença de detentos ilustres. A Lava Jato e a maioria do STF estavam em congraçamento.

A vara de Curitiba tinha aval para acumular uma diversidade de casos sob sua alçada, mesmo que não relacionados aos desfalques na Petrobras. O argumento que, quando os ventos políticos mudaram, anulou as condenações de Lula esteve desde cedo escancarado, mas as cortes deixaram passar.

Não teriam sido necessários os grampos das inaceitáveis combinações entre procuradores e Sergio Moro nem a aventura do juiz na política bolsonarista para os tribunais terem podado os excessos.

Exagerou-se na louvação de vingadores no passado. Exagera-se agora na tentativa de apagar as provas consolidadas de corrupção generalizada que foram levantadas pela Lava Jato. Vai-se embora a criança com a água do banho.

Que não reste dúvida sobre o sinal para o mundo da política. A corrupção na alta administração voltou a ser crime de punição improvável —voltou a ser estimulada.

8/9/2023

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