2013: não foi só por 20 centavos

Há dez anos inaugurava-se no Brasil uma nova forma de mobilização, com as jornadas que reuniram multidões em diversas cidades do país. Fenômeno semelhante tinha acontecido antes, com a chamada “Primavera Árabe” e os “Indignados” na Espanha. Em comum, tais movimentos fugiram do escopo das manifestações tradicionais, organizadas de forma vertical por partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais, na maioria das vezes de esquerda. O novo fenômeno foi chamado de “enxameamento”, porque as pessoas saiam espontaneamente das redes sociais para as ruas, sem estruturas hierarquizadas e de forma horizontal.

Sua eclosão no Brasil teve como gatilho um aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus na cidade de São Paulo, então governada pelo hoje ministro Fernando Haddad. Rapidamente as manifestações se espraiaram pelo país, com um leque bem mais amplo, tendo como eixo exigir serviços públicos de qualidade. A esquerda, até então detentora do monopólio das ruas, foi surpreendida pela multidão que coloriu as avenidas do país. De estilingue passou a ser vidraça. O Partido dos Trabalhadores estava no poder. No plano federal e na capital paulista.

Atônita, a então presidente Dilma Rousseff esboçou cinco pactos nacionais, prometendo investimentos na saúde, na educação, nos transportes, reforma política e combate à corrupção. Foram promessas levadas pelo vento. A presidente – como seu partido – não entendeu o recado das ruas e a aprovação do seu governo despencou 27 pontos.

Dez anos depois, a esquerda parece ainda não ter entendido os acontecimentos daquela época. Ao longo do tempo foi construindo uma narrativa, comprada por parte da comunidade acadêmica, segundo a qual junho de 2013 foi o ovo da serpente. Nele já estariam encapsulados os germens do impeachment de Dilma, da prisão de Lula e, por fim, da eleição de Bolsonaro, cinco anos depois.  A alegada linha direta entre esses fatos cai como uma luva para uma esquerda eternamente indisposta a fazer o acerto de contas com seus erros econômicos, políticos e éticos.

Havia, nas jornadas de 2013, um componente antipolítica e antissistema, expresso na palavra de ordem “sem partido, sem partido”. Também pela forma selvagem de luta adotado pelos black blocs. Esse sentimento, em grande medida se explica pelo descolamento dos partidos políticos e das instituições da realidade dura e sofrida da maioria dos brasileiros. Eles passavam ao largo das reais necessidades da população, assim como a esquerda, encastelada no poder, tinha perdido conexão com as ruas.

Nesse sentido, as grandes reivindicações daquelas manifestações não eram conservadoras, nada têm de direita e continuam extremamente atuais. Expressavam o cansaço do cidadão com serviços públicos de baixa qualidade. No momento em que o Brasil desperdiçava dinheiro público construindo estádios de futebol de primeiro mundo, queriam educação, saúde, segurança e transportes padrão Fifa. Como diziam, o gigante tinha acordado e não estava disposto a ver, calado, recursos públicos escapando pelos ralos da corrupção.

Não estava escrito nas estrelas que as manifestações de 2013 desaguariam na vitória de Jair Bolsonaro. Se isso aconteceu foi devido à incapacidade de se dar uma resposta institucional e sistêmica aos justos anseios de uma sociedade cansada de pagar impostos altíssimos e receber, em troca, serviços de terceiro mundo. Em outras palavras, os partidos, o Parlamento, o Poder Executivo, os sindicatos, a sociedade civil organizada foram incapazes de trazer para dentro do mundo da política as justas aspirações de um povo cansado de ficar calado.

O sistema falhou e ao falhar abriu espaço para o antissistema, para a antipolítica. Quando isso acontece, não resulta em boa coisa. Bolsonaro foi a forma perversa –  por isso mesmo a não-resposta – da incapacidade de se equacionar pela via democrática a demanda que vinha das ruas. Há muito a se cobrar de todos, antes de se colocar o dedo em riste nas jornadas de junho de 2013. A começar da esquerda encastelada no poder e do seu distanciamento do grito rouco das ruas.

Poderia ser diferente. Perto de nós temos o exemplo do Chile, com sua convulsão de 2019. O “Estalido social” foi muito mais grave do que nosso junho de 2013. Os partidos e forças políticas chilenos foram capazes de encontrar uma saída institucional, trazendo para dentro da política a demanda das ruas. Isso redundou na eleição de Gabriel Boric e no processo constituinte. Detalhe: o pacto chileno foi firmado em um governo de centro-direita, capitaneado por Sebastian Piñera.

Dez anos depois, a agenda das manifestações que reuniram multidões continua latente. O Brasil, quando não retrocedeu, pouco avançou em propiciar aos seus cidadãos serviços públicos de qualidade. Esse é o espírito de 2013 que a história nos dá uma segunda chance para resgatá-lo. A esquerda está novamente no poder. Não tem o direito de frustrar, mais uma vez, a demanda reprimida dos brasileiros.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 7/6/2023. 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *