O telhado caiu

Augusto acordou assustado, sufocado pelos escombros do telhado que caíra. De tanto esperar pela queda, sonhou com ela, telhas e vigas desabando sobre ele, vigia inútil de um templo esquecido.

Levantou sem sono, o sangue correndo rápido movido pelos pulos de seu coração, que parecia querer escapar do aperto do peito que o continha. Lavou o rosto com água gelada, vestiu-se, saiu de seu quarto e subiu as escadas que davam para a porta lateral de entrada do templo.

Entrou pela porta, olhou para cima e viu o desastre. Um feixe de luz feito os que iluminam santo em quadro religioso penetrava pelo buraco, criando uma atmosfera mística e revelando milhões de partículas de poeira flutuando entre o chão e a abertura do teto.

Augusto mal respirava de tanto pó.

Atravessou a nave central do templo, cobrindo nariz e boca com as mãos, os olhos ardendo. Demorou para acertar a chave na fechadura da porta principal. Parado com o templo nas costas, em pé no topo dos poucos degraus, os olhos cheios de poeira, aos poucos viu a rua ainda quase vazia naquele início de manhã, e viu seu amigo escalando o portão trancado, já pronto para pular. Joelmo, padeiro da padaria vizinha, madrugador por profissão, correra ao ouvir o estrondo.

Augusto, que alívio vê-lo vivo! Já liguei pra polícia, daqui a pouco eles chegam.

O som das sirenes se tornou audível, antes de Augusto saber o que responder.

Eles chegaram, entraram no templo, fizeram a perícia, cercaram o local do acidente, proibindo a passagem por razões de segurança. Esperaram a turma de apoio chegar com as ferramentas necessárias, ordenaram a mudança imediata de Augusto para outro lugar, supervisionaram a arrumação de suas malas, trancaram seu quarto, as portas do templo e o portão com corrente e cadeado. Deram-se por satisfeitos ao vê-lo na calçada e foram embora, já no fim da tarde.

Augusto mentira, não tinha para onde ir.

Noite fechada, Augusto continuava na frente do templo, sentado em cima de sua mala, lendo o texto positivista que reina solene sobre as colunas da entrada. Amor por base, ordem por meio,  progresso por fim. Amor, ordem, progresso, amem, ardor, agresso, promor, mordem, degresso, gresso, gresso, ardem, omor, mor, mor…

Joelmo levou pão com manteiga e café com leite para Augusto na manhã seguinte. E na próxima, e na outra. Augusto continuava olhando as palavras. Joelmo decidiu que ligaria para a polícia se Augusto continuasse ali quando ele chegasse na padaria no dia seguinte, quarta manhã depois da queda. Ou pro pinéu, ou chamaria o padre.

Alguém que nos acuda.

Não ligou, Augusto sumira.

Dias depois, chegou uma equipe para avaliar o estrago. Uma placa foi colocada, entrada interditada, obras em breve.

A nave vazia do templo ficou à mercê da chuva e dos pombos.

Joelmo no domingo subiu o outeiro da Glória, próximo à padaria e ao templo, querendo rezar por seu amigo na igreja.

Por amor, meu Pai do Céu, proteje meu amigo, amém. Minha Mãe da Terra, põe ordem em sua vida, essa ruína, amém.

Pensou bem, expandiu a reza, incluiu a si mesmo, incluiu mais gente.

A massa do pão nosso eu amasso, a cada dia, antes do sol raiar, me tragam, nos tragam progresso, Mãe da Terra, Pai do Céu, amém.

Joelmo desceu o morro, olhou a padaria fechada, onde em poucas horas estaria de volta. Olhou também o templo trancado, o resto de luz do dia iluminando as colunas, as palavras sobre elas, o buraco no telhado. Resolveu esperar a noite fechar e entrar escondido.

Pulou a grade, andou em volta do edifício de mais de cem anos procurando uma entrada. Ouviu barulhos abafados vindos do porão, acessível por dentro do templo e pela escada lateral que também levava ao quarto de Augusto, atrás do porão. Desceu a escada, bateu na porta chamando seu amigo, esperançoso de não encontrar apenas fantasmas.

Augusto dias antes havia entrado pelo buraco do telhado, e descido a escada interna para o porão. A equipe não havia se interessado em descer aqueles degraus cobertos de cacos de telhas.

Joelmo seguiu as instruções do amigo, achou a escada que encostou na parede externa, subindo até o buraco por onde conseguiu entrar no templo. Encontrou Augusto no porão, sujo, faminto, abraçado a uma caixa de madeira com tampa de vidro. Joelmo conhecia aquela caixa, sabia do zelo com que Augusto a limpara por muitos anos, tirando a poeira do vidro através do qual se via a pintura da bandeira brasileira, a primeira, o modelo criado em 1889. Até que ela sumiu.

A caixa estava vazia. Ninguém sabia do paradeiro da bandeira, fazia já um bom tempo. Quase ninguém sabia de sua existência, relíquia de um nascimento.

Joelmo saiu por onde entrara, correu à padaria, buscou leite e pão, e ferramentas para abrir o cadeado da porta lateral externa que levava ao esconderijo de seu amigo, o guardião do templo abandonado.

Augusto comeu, bebeu, insistiu para que Joelmo entendesse que ele não sairia dali, ignorou seus protestos.

Me traga pão, Joelmo, eu fico aqui.

Guardando essa caixa vazia?

Quem sabe ela volta, fico aqui aguardando. Não esqueça meu pão.

Novembro de 2022

 

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