O inadiável acerto com a história

As revelações dos áudios das sessões do Superior Tribunal Militar eliminam qualquer dúvida quanto à utilização da tortura como política de estado durante o regime militar inaugurado em 1964.  Nesse sentido, representam um marco. Já não se trata mais de denúncias feitas por vítimas ou por relatórios como o da Comissão da Verdade e do “Tortura Nunca Mais”, sempre negadas pelas Forças Armadas. Agora sabe-se que generais, almirantes e brigadeiros membros do STM debateram formalmente a prática sistemática da tortura nos porões da repressão.

O tema sempre foi tabu para os militares. No máximo admitiam excessos cometidos “pelos dois lados”. Essa versão cai por terra graças à pesquisa do historiador Carlos Fico, cujo teor foi revelado pela jornalista Míriam Leitão. Tratou-se sim de uma política oficial levada à prática pelos sucessivos governos daquele período.

De acordo com a lógica dos militares, eles travavam uma guerra assimétrica contra a esquerda armada, da qual só seriam vitoriosos se utilizassem métodos “heterodoxos”, como a tortura. O conceito de guerra assimétrica levou o general francês Jacques Massu a fazer da tortura o principal instrumento para dizimar a Frente de Libertação Nacional da Argélia. O filme A Batalha de Argel espelha bem os métodos utilizados pelo general Massu. Semelhança com o que acontecia nos porões da ditadura brasileira não era mera coincidência.

Diante do impacto dos áudios do STM, as Forças Armadas podem adotar duas atitudes.  Continuar negando os acontecimentos ou aproveitar o momento para fazer seu acerto com a história e virar uma página que mancha a sua imagem e depõe contra o seu passado. Enquanto mantiver seus esqueletos no armário não se livrará dessa nódoa.

Há mil e um formas de negacionismo. Uma delas é o deboche, arma utilizada pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão. Quando indagado sobre os áudios do STM, afirmou, com um sorriso irônico: “Apurar o quê? Os caras já morreram, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”. O cinismo do vice-presidente é o mesmo do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da república, ao desqualificar Míriam Leitão, torturada na sua juventude em um quartel do Exército.

Importante ressaltar que não está em questão a Lei da “Anistia recíproca” de 1979 e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010. A lei beneficiou a todos os envolvidos naqueles terríveis episódios.

Cada país tem sua própria história e na América do Sul a transição da ditadura para a democracia em diversos países se deu por caminhos diferentes.

Ao contrário do Chile, Argentina e Uruguai, onde os militares foram derrotados, no Brasil a transição se deu de forma negociada, da qual a Lei da Anistia foi um passo importante para a reinserção de cassados e adversários do regime na vida política nacional. A pactuação possibilitou ao país viver o maior período de sua história sem quarteladas, bem como permitiu que as Forças Armadas fizessem um recuo organizado para os quartéis.

De um lado, o Brasil pôde experimentar o maior período democrático desde o advento da República e, de outro, ao se dedicarem às suas funções profissionais e constitucionais, as Forças Armadas granjearam o respeito dos brasileiros. Manter esse pacto é fundamental para a estabilidade da nossa democracia.

Mas isso não exclui o julgamento da história sobre os anos de chumbo e da utilização da tortura como política de Estado. Está em jogo o que vamos ensinar para as futuras gerações: a versão cor-de-rosa assinada pelos comandantes militares na mais recente comemoração do golpe de 31 de março de 1964 ou a realidade revelada pelas gravações das sessões do STM?

Ao se cobrar um “mea culpa” dos militares, não se está avalizando o caminho seguido pela esquerda que combateu a ditadura com armas nas mãos. Até porque essa esquerda também não era democrática e cometeu excessos.

Mas estes excessos não podem justificar a utilização da tortura pelo Estado. Nada, absolutamente nada justifica tal prática. Nem mesmo o fato de vivermos, naquela época, os tempos da Guerra Fria, com o mundo dividido ideologicamente em dois blocos.

Revisitar esses tempos é fundamental para o Brasil se conciliar com o seu passado e para jamais a tortura voltar a ser um instrumento do Estado.

Os militares devem refletir sobre seus próprios erros e levar em conta as palavras do general Carlos Alberto dos Santos Cruz sobre os áudios: “É claro que a tortura de um preso custodiado em mãos do Estado está errada.”

Santos Cruz vai além: “Os fatos devem ser conhecidos para que não sejam repetidos. Não há como brigar com os fatos.”

Não será, portanto, botando uma pedra em cima do seu passado que as Forças Armadas farão o seu acerto com a história.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 20/4/2022.

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