Tenho um amigo marciano que de vez em quando aporta por aqui, para nos observar. Fazia tempo que não aparecia. Comemorei sua volta.
– Humilhante! – diz ele, sorrindo de orelha a orelha. – Num único mês, duas eleições nacionais e duas derrotas! – explica.
Mas nem precisava. Vi logo do que se tratava. Meu amigo marciano é de esquerda roxa. Em Marte, existem várias correntes políticas. A esquerda domina há séculos. O sistema é mundial parlamentarista e todos adoram. Escreveu não leu, o pau come na hora e o governo cai. Mas a esquerda não perde a pose e se reelege com um programa mais ousado que o anterior. Claro que a metade não dá certo, mas a outra metade, a que deu certo, é o que importa. E assim eles vão em frente.
– Estou estreando um novo tipo de espaçonave – ele diz, todo pimpão. – Antes, a gente tinha comando de voz no painel de controle. Agora, o comando é pelo pensamento. Pensou, tá lá!
– E por que você demorou tanto a aparecer de novo? – perguntei.
– Foi por causa da campanha eleitoral – respondeu. – A de lá, não a daqui. Dessa vez tomou muito tempo. Tivemos que refazer todo o plano. O povo queria mais e nós só entregamos a metade. Aí, caímos. Mas conseguimos remodelar o projeto e foi um sucesso. Tivemos votos que nem água.
– Tem água em Marte? – provoquei.
– Tem muita água sim, debaixo das calotas polares e daqueles canais que vocês vêem daqui.
– Xi, Marciano, é bom você não espalhar isso por aqui. Vai ter muita gente querendo ir pra lá – avisei.
– Não tem importância. Tem água pra todo mundo. O que não tem é ar!
– Não tem ar?! E o que é que vocês respiram? – perguntei.
– A vida – ele diz. – Respiramos a vida. Nossos pulmões já nascem com a quantidade de vida necessária para vivermos, uns mais, outros menos. Cada um tem sua quota nos pulmões. Mas isso eu explico depois.
– Depois coisa nenhuma! – respondi de supetão. – Agora que chegou o melhor da história eu quero saber e já! Como é que é isso?!
– Tá bom, não vamos brigar por causa disso. Eu vou responder – ele disse.
E começou a me contar a coisa mais incrível que já ouvi. Quando o ar foi acabando em Marte, eles passaram a sentir uma sede danada. E a fórmula da água é universal: H2O. Portando, lá como cá tem oxigênio pra caramba na água. Um átomo de O para dois de H. Então, pegaram um O de uma certa quantidade de água, que se transformou em H2, e tascaram no DNA dos marcianos por um processo de engenharia genética combinada com química quântica e, voilá, começaram a nascer marcianinhos oxigenados por natureza. Foi um xuá!
– E o que fizeram com o H2 que sobrou? – perguntei.
– Tascaram nos motores de propulsão das nossas espaçonaves, uai! – respondeu, como se eu fosse um mineirinho. – E por isso voamos de lá pra cá pelo espaço sideral, na hora que dá na telha, sô – completou.
– Humilhante! – respondi.
– Não – ele voltou –, humilhante é perder duas eleições no mesmo mês e ainda ficar reclamando, bloqueando estrada, xingando o TSE e as urnas eletrônicas. Acho o sistema de vocês genial e vou levar para Marte. Lá demoramos meses para contar todos os votos de papel, e ainda tem a recontagem para confirmar e depois da confirmação tem outra recontagem para confirmar a confirmação. Entendeu? Vocês fazem isso aqui em duas horas! Como é que nunca pensamos num negócio desses?
– Então foi para isso que você veio? – perguntei.
– Claro! Você pensa que é mole contar voto de papel? Vocês estão anos-luz na nossa frente!
E minha boca, que já estava arreganhada, caiu no chão.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e mais feliz
Novembro de 2022