Guardados da memória

Trem de ferro, Maria Fumaça, resfolegando uma tarde inteira pelo Noroeste de São Paulo. Por fim, surge a estação com a placa: Birigui. Na plataforma, tios e primos esperam. O pré-adolescente e sua irmã, mais nova que ele, o pai e a mãe, preparam-se para o desembarque. Tanto tempo sem se ver… O reencontro é ao mesmo tempo alegre e emocionante.

A casa da tia, onde se hospedam, é confortável, mas sobretudo arejada. Birigui, já apontando para o Mato Grosso do Sul (a uns cem quilômetros), é terra de muito calor. A casa tem chuveiro elétrico, mas o fogão é à lenha. Um feijão delicioso. Na cozinha fica também peça importante. A moringa de barro, com sua água fresca.

O terreiro da casa é sombreado por muitas árvores frutíferas. Manga (dois enormes pés, carregados), uva, banana, figo da índia… só não tem goiaba. Justamente a goiaba, lamenta-se o jovem visitante. No entanto… Na casa vizinha há vários pés da fruta. Com um detalhe. Elas são vendidas. Com outro detalhe. O preço é irrisório, e, enquanto estiver na árvore, o comprador pode comer quanta goiaba quiser que não paga.

A rua onde estão é coberta por um matinho ralo, marcado por dois sulcos paralelos, deixados pelos pneus de carros e caminhões. Fora do centro (onde ficam a praça com o coreto e uma concha acústica) são poucas as ruas calçadas. Na praça, estão o ponto dos dois táxis Vanguard, ingleses (os Volkswagen alemães, montados no Brasil, estavam começando a surgir). Adiante do ponto dos táxis ficava o das charretes, com o preço da corrida mais em conta.

Em uma das ruas calçadas surgiam duas casas de meretrício. Mas a convivência com os moradores era pacífica. Naquele trecho, alguns atravessavam para a calçada do outro lado, e iam em frente.

Um dos tios do garoto trabalhava no Bar Paladar, perto da praça. O bar era na verdade um restaurante, que também servia lanches e doces. O sobrinho batia ponto no balcão dos doces, para comer um bom-bocado inesquecível.

No outro lado da rua, ficava a emissora de rádio. Um programa de grande audiência era o de atender pedidos de ouvintes. Estes telefonavam, davam seu nome e o da música desejada. Um sucesso de Francisco Alves, Dalva de Oliveira… Quando chegasse sua vez, teriam o nome citado e o pedido atendido.

Na casa da tia, o rádio ficava na cozinha. Lugar de bom tamanho, chão rústico encerado, onde ela passava bom tempo preparando as refeições. E onde a família acabava se reunindo para conversar, petiscar alguma coisa e… ouvir rádio.

Mas chegava o momento da volta. Todos na estação, agora para a despedida. A Maria Fumaça percorreria os 183 quilômetros até Bauru. Daí, seriam outros quase 300, no trem mais veloz, puxado por locomotiva a diesel, até alcançar a Estação da Luz.

Parece que foi ontem…

Setembro de 2022

Um comentário para “Guardados da memória”

  1. Lindeza de relato, Valdir.
    Cenário que se repetia por todo o interior.
    Ah! o trem…

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