Com o pé esquerdo

Boa parte das pessoas se sente envergonhada ou no mínimo constrangida quando não faz o que diz, descumprindo promessas ou compromissos firmados. Na política, a regra é o inverso. Contam-se nos dedos aqueles que honram a palavra empenhada – mão que não inclui nem o presidente da República que sai nem o que entra na próxima semana. Jair Bolsonaro encerra seu período no sentido avesso ao prometido, estimulando ações golpistas e sem impor a propagandeada agenda liberal, e Luiz Inácio Lula da Silva provoca desconfianças antes mesmo de assumir.

Não há motivo para gastar a paciência do leitor com Bolsonaro. Seu (des) desgoverno fala por ele, com a implacável destruição de programas estruturais em áreas essenciais como saúde, educação e meio ambiente, e a redução drástica de recursos para as áreas sociais. Tudo dissecado em documento do Tribunal de Contas da União e nas 100 páginas do relatório final da equipe de transição.

Lula já assegurou dinheiro para cumprir promessas básicas, como a manutenção dos R$ 600 para o Bolsa Família, algo que também constava no programa do presidente derrotado, e o adicional de R$ 150 por criança, além do reajuste do salário mínimo acima da inflação. A PEC da Transição garantiu ainda recursos para cobrir déficits do Farmácia Popular e da merenda escolar, além de incluir outras áreas desidratadas no orçamento, como habitação e pesquisas científicas.

Mais: com o fim do orçamento secreto, e a divisão dessa rubrica entre o Executivo e o Legislativo, o petista aumentou o valor de face da moeda de negociação com o Parlamento em quase R$ 10 bi, metade dos R$ 19,5 bi previstos para as emendas sigilosas proibidas pelo STF.

Político hábil, Lula conseguiu mais do que ele próprio imaginava ao sair de uma eleição apertada, na qual teve de fazer concessões ao centro, com a difícil tarefa de distorcer o nariz de seus companheiros mais próximos. Na campanha e no pós-vitória, garantiu que faria um governo para além do PT.

Descumpriu a promessa já nos primeiros movimentos, quando por deslize estratégico, centralismo ou prepotência, optou por anunciar só o núcleo duro do governo, integralmente petista. Poderia ter feito um mix, aproximando-se das demais correntes de apoio. Na economia, setor para o qual atraiu especialistas de diferentes matizes ideológicos, entre eles os pais do Real, renegou todos.

Cozinhou em banho-maria Simone Tebet e Marina Silva, importantes aliadas entre o primeiro e segundo turnos, para as quais tinha garantido e reafirmado posição de destaque no governo. Pior: o PT tentou criar um clima de rivalidade entre elas – ambas presidenciáveis em 2026. Nos discursos, Lula insistiu na frente ampla e na política de união nacional. Na prática, redesenhou o ambiente de hegemonia petista, cuja experiência já se demonstrou fracassada.

Cabe ressaltar a balela da união nacional em um país há muito dividido. O nós versus eles vem de longe, tendo o PT como protagonista nesta história. O que mudou foi a belicosidade do inimigo. De um PSDB quase dócil e controlável para um bolsonarismo insano.

Lula tem a faca e o queijo nas mãos para, já no primeiro ano, cumprir o grosso das promessas de campanha. Mas, até por ter recursos assegurados, seu tempo de lua de mel será encurtado, o que exigirá apoio político mais sólido. Com o PT e os demais partidos de esquerda, soma apenas um terço do Congresso. Conseguirá atrair os fisiológicos e os dependentes de governo, o que pode garantir vitórias pontuais e custosas, ao ponto de ressuscitar a incômoda aura da corrupção que paira sobre o petismo.

As presenças de Simone e Marina no governo o fazem retomar a trilha da frente ampla, dão lastro às suas palavras e conferem um selo de credibilidade que Lula não pode descartar.

Não dá para entrar o ano só com o pé esquerdo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 25/12/2022. 

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