O Lampedusa da Saúde

Jair Bolsonaro sentiu necessidade de fazer algo diante da queda de sua popularidade, em decorrência de sua política negacionista, da ameaça que pode representar a CPI da Saúde no Congresso Nacional e da elegibilidade de Lula. A história lhe deu a última oportunidade de ruptura com a desastrada condução no enfrentamento da pandemia: demitir o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e nomear alguém competente para a área.

O modelo formatado pela médica Ludhmila Hajja – autonomia na montagem de uma equipe técnica, instalação de um gabinete de crise, foco no isolamento social e na vacinação em massa – seria essa possibilidade.

Em vez da ruptura, o presidente preferiu o caminho da acomodação, na escolha do seu quarto ministro da Saúde em plena pandemia. Sua frase “Queiroga (Marcelo Queiroga, novo titular da pasta) tem tudo para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento em tudo o que Pazuello fez até hoje” é de dar frio na espinha dos brasileiros. Ela deixa claro que não haverá mudança de rumo.

O balizamento está dado: seu governo não apoiará o isolamento social e tampouco recuará de sua política de hostilidade aos governadores, que têm arcado com o desgaste da adoção de medidas impopulares, mas necessárias.

O fato do novo ministro ser da área e haver boa vontade em relação à sua gestão não são suficientes para a reversão de um quadro dantesco que, mantida a mesma toada, poderá chegar a 600 mil mortos ao final da pandemia, conforme previu Ludhmila. Só para se ter noção do tamanho da tragédia: em dez anos de guerra na Síria morreram 300 mil pessoas. Nós poderemos ter o dobro em um horizonte curto.

A idéia de que daqui para frente vai melhorar porque haverá uma maior oferta de vacinas é doce ilusão. A corrida mundial por imunizante tende a se acelerar, principalmente agora que quase todos os países da Europa – incluídos França, Alemanha, Espanha e Itália – suspenderam o uso da AstraZenica por efeitos adversos a serem comprovados. Imagine como ficaremos se tivermos que suspender aqui também.

A única maneira de nosso país ter posição forte nessa guerra de gigantes em busca de vacinas é se houver uma união nacional envolvendo os três entes federativos, os três poderes da República, as forças políticas e a sociedade em torno de um mesmo propósito. Caberia ao presidente liderar esse processo, com seu ministro da área tendo protagonismo na aliança pela saúde.

Por aí poderíamos demonstrar que é do interesse mundial a vacinação em massa no Brasil porque, lamentavelmente, o país se transformou em um incubador a céu aberto de novas cepas do coronavirus.

Implica também em fazer a lição de casa: isolamento social, adoção de lockdown regional em casos extremos, um plano nacional e de emergência para evitar as mortes de pacientes de Covid por falta de leitos de UTI, de oxigênio e de outros insumos. Esse era o modelo Ludhmila Hajja.

O presidente não tem essa grandeza de visão. Queiroga está para a Saúde como Milton Ribeiro esteve para a Educação, quando da destituição de Abraham Weintraub. No primeiro momento há uma sensação de alívio, em seguida, uma enorme frustração. E ela apareceu já nas primeira declarações do novo ministro, dúbias tanto em relação à cloroquina quanto ao isolamento social, dizendo-se contrário ao lockdown, que só deveria ser adotado em escala regional.

Até aí “morreu Neves”. Ninguém propôs um lockdown nacional. O problema é outro. O subtexto de sua afirmação é o aval para a postura de Bolsonaro de sabotagem às medidas adotadas pelos governadores de limitar as atividades aos serviços essenciais em Estados nos quais a rede de saúde – pública e privada – está colapsada.

Bolsonaro adotou a solução Lampedusa – para ficar como está é preciso que tudo mude – porque o contrário seria o reconhecimento de sua derrota. Seria negar a sua própria alma e contrariar seus brigadistas, cujo radicalismo aumentou exponencialmente desde que Lula voltou a ser elegível. Essa base fez campanha sórdida contra Ludhmila e ocupou as ruas no último domingo em protesto contra o isolamento social e em defesa da intervenção militar.

O que se pode esperar de um presidente que, quando indagado sobre as ameaças de morte à ex-futura ministra da Saúde responde “faz parte”?

O Brasil se livrou de Pazuello, mas não do pazuelismo. A submissão do Ministério da Saúde a uma política negacionista continua viva. Agora, na sua versão soft.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 17/3/2021,.

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