A urgente volta aos quartéis

Na maioria dos países de ordenamento democrático as Forças Armadas estão submetidas ao primado do poder civil. Seu controle externo é exercido pelo Congresso, a quem cabe a responsabilidade de lhes dar uma direção política. No Brasil, o Parlamento tem se furtado a exercer esse papel. A Emenda Constitucional de autoria da deputada Perpétua Almeida rompe com essa omissão ao normatizar a presença de militares da ativa em cargos governamentais.

Chamada de “Emenda Pazuello”, obriga a passagem para a reserva de oficiais ou graduados que ocupem cargos da natureza civil. Haverá exceções, claro, em áreas como o ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional. Mas o sentido geral é colocar um freio na hipertrofia da presença de militares no governo, que na gestão Jair Bolsonaro assumiu dimensões estratosféricas.

Na verdade, o Brasil se vê diante da necessidade de reconstruir o pacto estabelecido na transição democrática de 1985, quando os militares refluíram organizadamente para os quartéis e passaram a se dedicar exclusivamente à defesa nacional e às suas obrigações constitucionais.

O pacto foi benéfico para o país e para as próprias Forças Armadas. De um lado, o Brasil ingressou no maior período de sua história sem ruptura democrática, sem quarteladas. Os militares deixaram de se comportar como “poder moderador”, tradição iniciada no advento da República, e granjearam o respeito e a admiração dos brasileiros. Passaram a ser o braço amigo, presente nas catástrofes, nas crises de segurança, em missões humanitárias, com a vantagem de passarem ao largo dos escândalos de corrupção.

Os germens do esgarçamento desse pacto já se faziam sentir antes mesmo do governo Bolsonaro. Os militares se sentiram agastados com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, de 2014. Entendiam que houve uma ruptura do acordado, uma vez que teria sido contratado referências tanto aos crimes e violações cometidos pelo regime militar, como também a atos praticados pela esquerda armada. No final, apenas os militares e agentes da repressão foram citados.

Esse desequilíbrio teria sido o estopim para o ativismo político da gestão do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas. O ápice foi sua nota quando do episódio do julgamento pelo STF do habeas corpus de Lula. No governo Dilma Rousseff estabeleceu-se uma relação de desconfiança mútua.

A despeito de terem recuado para os quartéis quando da democratização, as academias militares continuaram formando oficiais com as mesmas concepções de soberania nacional de 1948 e pilar da doutrina de segurança nacional do período do regime militar. Ainda hoje, o fantasma do comunismo, esse anacronismo dos tempos da guerra-fria, é um anátema para os militares. Registre-se aqui a omissão do Congresso Nacional. Jamais discutiu qual tipo de formação deve ser dada aos nossos militares. Os sucessivos governos pós 1984 preferiram não mexer nesse vespeiro.

A candidatura Bolsonaro representou a possibilidade da volta dos militares ao poder, razão pela qual foi apadrinhada de forma orgânica pelas Forças Armadas. No segundo dia do seu mandato o atual presidente disse, na posse do novo ministro da Defesa, ter um segredo comum com o ainda comandante do Exército, ao proferir a seguinte frase: “General Villas Bôas, o que conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.

Mais claro, impossível. A simbiose Forças Armadas/governo fica evidenciada num dado fornecido pelo coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge Souza: 14 dos 17 membros do Alto Comando do Exército de 2016 participaram ou participam do governo Bolsonaro. Entre eles, figuras de proa como os generais Eduardo Ramos e Braga Neto. Uma revelação interessante: todos eles frequentaram a AMAN nos anos 70, quando Jair Bolsonaro também estava lá.

Como outsider, Bolsonaro chegou ao poder sem ter atrás de si um partido, um leque de alianças e quadros para governar. Para preencher as lacunas encheu a máquina pública de militares. Da ativa e da reserva. Oficiais são quadros preparados, mas para a missão de defesa nacional. Não necessariamente para administrar missões para as quais não tem formação, como no caso da Saúde.

Seu fracasso em funções para as quais não tem o menor preparo findam por respingar na imagem das Forças Armadas. O caso do general Eduardo Pazuello é emblemático. O estrago é maior quando oficiais, ainda que da reserva, estabelecem relações promíscuas com atravessadores que tentam vender vacinas na lua.

Nada autoriza concluir que as Forças Armadas embarcarão em uma aventura golpista, se o presidente trilhar esse caminho. Mas é inegável que os pilares da hierarquia e da disciplina foram afetados e Bolsonaro avançou uma casa a mais ao mudar o comando das três forças e nomear um ministro da Defesa inteiramente alinhado ao seu projeto de poder.

Numa instituição fortemente hierarquizada, o exemplo vem de cima. E ele não é bom. A não punição de Pazuello, a nota dos três comandantes militares e, sobretudo, a entrevista ao jornal O Globo do comandante da Aeronáutica representam uma péssima sinalização para a tropa, indicando que é urgente, ou melhor, urgentíssimo, a volta dos militares aos quartéis.

A emenda da deputada Perpetua Almeida, se aprovada, contribuirá nessa direção. Em certo sentido vai ao encontro do sentimento da cadeia de comando das Forças Armadas. Mas é preciso ir além. Tornou-se uma prática rotineira do Congresso furtar-se ao debate da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa. Essa é sua obrigação, segundo a lei complementar 136. Os militares não mudarão apenas por causa dos belos olhos de quem quer que seja. É necessário que o Parlamento dê a direção política.

Este artigo foi originalmente publicado pelo Blog do Noblat, em 21/7/2021.

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