A força das panelas

Morte por asfixia de pacientes sem oxigênio, revezamento desesperado de médicos e enfermeiros para ventilar doentes manualmente, 750 internados, incluindo bebês prematuros, tendo de ser transferidos às pressas para outros estados. O colapso do sistema de saúde do Amazonas é mais do que o retrato doloroso e cruel da inépcia do governo Jair Bolsonaro – é um divisor de águas. Não à toa, panelas e gritos de “fora Bolsonaro” ecoaram mais fortes na noite de sexta-feira.

Não se trata mais de críticas ao desprezo pela vida escancarado no “e daí?”, ou a declarações irresponsáveis como a de “gripezinha” ao se referir ao coronavírus. Agora teve de tudo: “assassino”, “genocida”, “facínora”.

Ouviu-se a indignação presa na garganta de quem não pode ir para a rua protestar porque respeita os protocolos preventivos e o próximo. Daqueles que têm feito o possível e o impossível para ficar em casa enquanto o presidente prega aglomerações em nome da liberdade de ir e vir  – e de infectar o outro.

Pouco importa se foram centenas de milhares ou milhões batendo panelas. O fato é que só a convocação da manifestação colocou Bolsonaro na defensiva, apressando-se a justificar o injustificável.

No Amazonas a doença se alastrou na última semana “porque o clima subiu”, disse Bolsonaro em entrevista à Jovem Pan pouco antes do panelaço. Tratou ainda de culpar o Supremo Tribunal Federal pelas ocorrências, insistindo na falsa ladainha de que fora “proibido pelo STF” de lidar com a crise da Covid-19.

Mais cedo, sua tropa de choque tentou desviar-se da mira. A deputada Bia Kicis (PSL-DF) usou as redes para culpar o governo amazonense, sem dar um pio quanto à postagem feita por ela antes do Natal: “A pressão do povo funcionou tb em Manaus. O governador do Amazonas, @wilsonlimaAM voltou atrás em seu decreto de lockdown. Parabéns, povo amazonense, vcs fizeram valer seu poder!” Em vez de poderosa, a conta foi macabra.

A pane na saúde amazonense não pode ser atribuída apenas ao governo federal. Os erros foram sequenciais e cumulativos. Era tragédia anunciada.

O governador cedeu à pressão contra o fechamento do comércio na véspera das festas de fim de ano, mesmo com os indicadores apontando para o aumento de internações. Os empresários fizeram pouco caso da doença, o povo foi às compras animado pelo discurso egoísta do bolsonarismo. Mas a patética cobrança de tratamento preventivo com cloroquina feita pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, na visita a Manaus na segunda-feira, em meio ao incêndio, foi de monstruosidade imbatível. De arrepiar.

Bolsonaro não tem como escapar das decisões trágicas que tomou. Mesmo diante do aumento da demanda por respiração assistida imposto pela pandemia, seu governo restabeleceu no ano passado as taxas de importação de oxigênio – 14% para cilindros de ferro e 16% para cilindros de alumínio. E zerou os impostos para importação de pistolas e revólveres de uso pessoal. Sem meias palavras, fez a opção pela morte.

Só voltou atrás na suspensão das alíquotas sobre o oxigênio depois da grita geral pós-asfixia amazônica.

Culpa da temperatura elevada, do STF, do não uso da cloroquina. Useiro e vezeiro em jogar o fardo nas costas alheias, Bolsonaro tenta repetir o método, dessa vez com argumentos ainda mais frágeis do que de costume. E os reveses sofridos na semana não pararam por aí.

Aflito para largar antes do inimigo João Doria, Bolsonaro colocou o avião à frente da boiada para forçar a Índia a entregar 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, que o seu governo, por meio da Fiocruz, pretende produzir. Deu tudo errado. A Índia só vai liberar as exportações depois do início da vacinação interna, e o avião da Azul, especialmente decorado com a propaganda governamental, não decolou.

Mais: o calendário da Fiocruz só prevê produção nacional da vacina da Oxford a partir de 8 de fevereiro, dependendo ainda da importação do insumo chinês IFA, que não chegou. Assim, se quiser a pole-position, Bolsonaro terá de abrir a campanha nacional de imunização com a “vacina do Doria”.

Na sexta-feira do panelaço, o Ministério da Saúde solicitou, encarecidamente, que o Instituto Butantã antecipasse a entrega de 6 milhões de doses da Coronavac, a “chinesa”. Sim, a mesma vacina de que o presidente fez e faz chacota.

O Butantã é sério e não fará birra como o governo Bolsonaro costuma fazer. Já adiantou que irá atender à demanda. O urgente é que a vacina comece a ser aplicada. E que bom que o Instituto financiado pelo governo paulista já tem mais de 11 milhões delas e capacidade para produzir um milhão por dia.

Bolsonaro jamais fará mea culpa. Ele que se dane. Depois do Amazonas, panelaços deverão ser mais constantes e o clamor para impedir o presidente tende a se tornar mais vigoroso.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 17/1/2021. 

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