Em fevereiro de 1971, o editor de Reportagem Geral do Jornal da Tarde, Fernando Portela, tomou uma decisão arriscada, para dizer o mínimo. Ousada, perigosa: incumbiu um foca, um absoluto foca, de viajar para o Recife para fazer amplas reportagens sobre o carnaval da cidade.
Não era para cobrir o carnaval no sentido mais estrito da expressão. Não era para relatar os fatos daquele carnaval específico – e sim para reportar como era a festa na capital pernambucana, por que ela era considerada uma das maiores do Brasil, rivalizando com os carnavais do Rio de Janeiro e de Salvador. Quais eram suas características, seus ritmos, quem eram seus grandes nomes.
Reportagem, enfim. Grande reportagem – essa coisa que, naquela época, quem melhor fazia eram a revista Realidade e o Jornal da Tarde.
Recursos, isso o jornal tinha, quase até de sobra. Lançado em 1966 pela empresa que editava o já quase centenário O Estado de S. Paulo, um dos principais do país e da América Latina, e mantinha a Rádio Eldorado, uma das melhores do país, o JT pagava ótimos salários e não economizava em viagens para repórteres e fotógrafos.
Qualquer profissional de grande veículo de hoje em dia ficaria espantado com as excelentes condições de trabalho no JT daquela época.
O que tornava a decisão de Fernando Portela arriscada, ousada, perigosa, era a escolha do repórter para uma missão daquela envergadura. O cara tinha apenas 7 meses de jornal, e antes jamais havia trabalhado numa redação. Era um danado de um foca, inexperiente.
Mas o editor bancou a aventura.
Pernambucano, orgulhoso de sua terra como todo pernambucano, daqueles que têm a certeza de que o Capibaribe e o Beberibe se encontram no Recife para formar o Oceano Atlântico, Portela recomendou ao foca que se apresentasse ao chefe da Sucursal do Estadão no Recife, Carlos Garcia, jornalista brilhante, grande nome, veterano, experiente, e pegasse com ele todas as dicas possíveis. Seguramente deve ter recomendado ao colega e amigo que recebesse com paciência o foca, e lhe ensinasse o caminho das pedras.
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Quando voltou para São Paulo, o foca ouviu de amigos que um colega da redação, pelo menos – um excelente repórter, de belo texto, de nome reconhecido –, havia comentado, com empenho, com ênfase, que Portela tinha errado na escolha do enviado a Recife. E, quando o foca mandou sua primeira matéria, no dia em que chegou a Pernambuco, a sexta-feira, comemorou o fato de que era um textinho bem chinfrim.
Em 1971, o JT não circulava aos domingos, o dia mais forte do jornalão que pagava suas contas. A edição mais importante do JT era a das segundas-feiras, o dia em que o Estadão não circulava.
O JT da segunda-feira de carnaval, 22/2/1971, trouxe uma página inteira e meia de textos do foca. Uma tinha o titulão em futura light caixa alta FREVO, e a outra MARACATU. Acima da palavra “frevo”, o olhinho era: “Nesta página e na seguinte, o repórter Sérgio Vaz descobre os ritmos do carnaval pernambucano”. Abaixo, outro olhinho: “A orquestra vai na frente, com seus instrumentos de sopro. Atrás, gingando, vai o povo do Recife”.
Na quarta-feira de cinzas, mais uma página. O título era “Um grande carnaval começa a se esconder nos clubes”, e o olhinho dizia: “O repórter Sérgio Vaz conta por que o carnaval do Recife está desaparecendo das ruas”.
É preciso lembrar o ano: 1971. O pior período da ditadura. Naquela época estava havendo um esvaziamento do carnaval de rua. Felizmente, foi só naquela época, e o carnaval de rua do Recife voltou a ser a maravilha que havia sido antes – mas isso não vem tanto ao caso.
Me deu vontade de contar essa história quando vi no Facebook que hoje é aniversário do Fernando Antônio Torres Portela.
Jamais poderia me esquecer do meu primeiro editor, assim como do sub dele, Sandro Vaia. E jamais me esqueço de gestos generosos que me fizeram na vida.
Ahnn… Gostaria de acrescentar ainda um detalhinho.
Só um exemplo de como eram boas as condições de trabalho no JT daquela época, na verdade no jornalismo daquela época – mesmo para um foca iniciante, inexperiente de tudo.
Trabalhei feito um camelo naqueles dias, desde a chegada ao Recife, na sexta, até a noite da terça. Entrevistei um monte de gente, fui a vários lugares. Trabalhei pra cacete, sem parar. Abnegadamente.
Aí então, na quarta-feira de cinzas, me dei ao direito de ir me encontrar com o Toinho Portela, num bar diante do mar, na Boa Viagem. Não me lembro a que hora começamos, mas era ainda meio da tarde, e ficamos de papo até bem de noite.
(Toinho, nessa época, fazia, lá do Recife, a tradução das tirinhas de quadrinhos que o JT publicava; a produção mandava as tirinhas para ele, no original em inglês, no malote para a Sucursal do Recife, e ele devolvia com a tradução. Diacho, que dureza – e que delícia – era o mundo pré-admirável mundo novo da comunicação online. Mais tarde ele viria passar uma temporada em São Paulo, trabalhando na Internacional.)
Creio que nunca mais consegui fazer uma pilha de bolachas tão alta quanto aquela que Toinho e eu fizemos diante do mar da praia de Boa Viagem.
In illo tempore, o foca podia se dar ao luxo de se presentear um dia inteiro de folga pago pelo jornal antes de voltar para o trabalho.
16/8/2020
Delícia de história, delícia de texto. Fosse eu o Portela, ficaria todo orgulhoso do foca.
Portela sempre foi um grande colega, companheiro, mas não iria enviar um foca se não conhecesse, ou intuisse , as qualidades dele. Investiu, sabendo que viria ouro. Agora, imagine- se a “responsa” deste ao subir no avião, destino Recife. Foi, encarou, venceu.
Amabilissimo Toinho Portela. Conheci nas vezes em que esteve na redação em São Paulo. O texto servaziano trouxe a mim também belas recordações.
Que texto delicioso. Eu, como grande fã do Jornal da Tarde, adoro quando vc conta essas histórias.
SVum, maravilhoso é dizer pouco. Duas ou mais coisas sobre o que acabei de ler. Comecei no JT em abril de 1971, levado pelo Murilinho. Eu virei jornalista em abril de 1968, na Folha de S. Paulo, e lá permaneci por exatos três anos. Um dia, mum bar, que é o local certo e com a bebida que sempre apreciei e prestigiei por anos e anos, décadas e décadas não seriam exagero, enjoou-se de mim, e eu retribuía com um “nem te ligo”. Mas não teve jeito, o uísque não desce mais tão amistosamente como antigamente. Mas iremos a ele, certing? Uma segunda coisa: o Valdir, em sua visita a este saite, lembrou que o primo-irmão do Portela é Toínho e não Toninho. Entre as tiras que traduzia, a minha predileta era a do Zé do Boné. Em outubro de 1967, comecei a usufruir uma bolsa no recém criado Instituto Superior fo Trabalho, da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. E pelo menos em todas as senanas que lá oermaneci, recebia as tirinhas do Zé do Boné, recortadas e me enviadas pela Suzana, com quem me casei em fevereiro de 1969. Eu era advogado trabalhista, o que ne valeu a bolsa. Mas não era o que queria ser. Queria mesmo era ser jornalista. O resto da minha história fico lhe devendo. Abração, Satã, abração, Toínho, abracão, Mary, abração , Valdir… E pra você, Um, meus parabéns e um abraçaço.
Como é bom ter histórias pra contar… É o caso do Sérgio. Junto dele não se sente o passar das horas.Delícia pura…