Foi o mais fantástico, importante, impactante, histórico, sensacional acontecimento da música pop do mundo desde o Live Aid – os dois concertos simultâneos em Londres e na Filadélfia reunindo todos, todos os grandes grupos e artistas dos países de língua inglesa, no dia 13 de julho de 1985, para arrecadar dinheiro para ajudar as vítimas da fome na África.
Só não havia palmas, urros de alegria, encantamento, ao final de cada canção. Cada um dos artistas se apresentava em sua casa. Até mesmo as bandas: foi, seguramente, a primeira apresentação dos Rolling Stones, nestes 58 anos em que estão na estrada, em que cada um dos músicos estava em um lugar diferente dos outros, cada um em sua casa.
É claro, é óbvio que um show sem aplausos, sem público diante dos artistas, é completamente diferente de um show em um estádio abarrotado de gente.
É óbvio.
Mas o que faltou de calor humano, de clima de show de estádio no belíssimo One World: Together at Home, foi plenamente, sobejamente compensado pela importância histórica, política, sociológica, simbólica e também prática do evento. (Está correndo uma hashtag: #OneWorldTogetheratHome.)
A começar pela própria natureza, pela própria razão do acontecimento: foi um show planetário, com artistas do mundo inteiro, para uma audiência planetária, para apoiar o trabalho dos médicos e demais profissionais da área de saúde, e também todos os que fazem serviços essenciais. E para enfatizar a necessidade de as pessoas ficarem em casa, como a única medida possível de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.
No total, o evento durou oito horas consecutivas, das 15 às 23 horas do sábado, 18/4, pelo horário de Brasília. Das 19 às 3 horas da madrugada de domingo em Londres, das 14 às 22 horas em Nova York, das 11 às 19 horas em Los Angeles e San Francisco.
Foi um evento só, com a mesma estrutura – embora com duas partes distintas. Entre uma canção e outra, artistas da área musical, do cinema ou da televisão faziam comentários a respeito da luta contra a Covid-19, e havia entrevistas com médicos, enfermeiros, cientistas falando sobre a pandemia, e imagens das mais diferentes cidades do mundo vazias devido ao distanciamento social.
E foi um evento cujo propósito básico não era arrecadar fundos. O que o diferencia do Live Aid e das outras grandes reuniões de artistas por uma causa – dos Concertos para Bangladesh no Madison Square Garden de Nova York ao U.S.A. for Africa da canção e do disco “We Are the World”.
Este One World: Together at Home repetiu diversas vezes que não existia para pedir doações dos espectadores mundo afora, Foi feito para homenagear os profissionais da área de saúde e dos serviços essenciais (transportes, abastecimento), para realçar, mais uma vez e sempre, a necessidade do distanciamento social como arma para impedir que a pandemia se espalhe rapidamente demais de forma a quebrar os sistemas de saúde de todos os países. E para insistir na necessidade de todos e cada um apoiarem as ações da Organização Mundial de Saúde.
(Um registro obrigatório: foi Mary, e não eu, que expressou isso que está na abertura do texto: que este show foi o evento mais importante da música pop do mundo desde o Live Aid. É uma verdade absoluta – mas foi Mary que primeiro expressou.)
***
Um evento só, com a mesma estrutura, o mesmo propósito básico. Mas, na verdade, dividido em duas partes.
Uma parte durou as seis primeiras horas – e foi exibida ao redor do mundo pela internet e pelos canais de televisão que se interessassem. No Brasil, o Multishow, é claro, se interessou – e transmitiu tudo na íntegra, desde o iniciozinho, às 15h de Brasília, até o final, às 23h. Imagino que em cada país pelo menos algum canal de TV tenha transmitido a íntegra, tal qual fez o Multishow.
De qualquer forma, tudo estava disponível o tempo todo pelo YouTube.
Nessa primeira parte, participaram artistas dos mais diferentes países – Estados Unidos, China, Itália, França, Irlanda, Inglaterra, Nigéria, Colômbia, África do Sul. O escambau. Poucos desses artistas são bastante conhecidos. Mas participaram ali Annie Lennox, Sheryl Crow, Jack Johnson, Jennifer Hudson.
Na segunda parte, as duas horas finais do show, apresentaram-se os maiores astros: Paul McCartney, Rolling Stones, Elton John, Stevie Wonder, Eddie Vedder, Taylor Swift, Jennifer Lopez – e Lady Gaga, o Bob Geldorf da vez, a pessoa que, como Bob Geldorf fez no Live Aid, teve a idéia e batalhou para que a coisa fosse organizada.
A fantástica diferença entre as seis primeiras horas do show e as duas últimas foi que estas – a segunda parte do evento – foram transmitidas simultaneamente, nos Estados Unidos, pelas três grandes redes de TV aberta, as terrivelmente rivais entre si ABC, NBC e CBS.
Nas duas horas mais nobres da televisão no país mais rico do mundo – das 20 às 22h de sábado –, as três redes rivais se uniram para transmitir ao mesmo tempo este One World: Together at Home. O show foi apresentado simultaneamente por três âncoras, um de cada uma das redes.
Não me lembro de outra ocasião em que as três redes de TV dos Estados Unidos se uniram em uma transmissão.
Esse foi um acontecimento absolutamente extraordinário, histórico, de importância descomunal.
Ao longo de duas horas, toda a população do país mais rico do mundo tinha para ver na TV aberta um show em defesa da Organização Mundial de Saúde e o distanciamento social como melhor arma para combater a pior pandemia dos últimos 100 anos.
Ou seja: tudo aquilo que representa o oposto do presidente do país, Donald Trump. Ele mesmo, o idiot-in-chief, o tresloucado populista de direita doentia que faz a cabeça do louco, idiota, imbecil presidente da República Federativa do Brasil, Jair Coronaro, o Capitão das Trevas.
Trump foi negacionista enquanto pôde. Desdenhou o potencial de letalidade do coronavírus. Demorou para tomar providências. Politizou a pandemia. Culpou a China. Diante do crescimento absurdo do número de infectados e mortos no país, foi obrigado a baixar um pouco a bola, o topete grotesco – mas, sempre que pode, bota as manguinhas de fora, defende o fim do isolamento, a volta das pessoas às ruas.
Nesta semana, na exata mesma semana em que aconteceria o One World: Together at Home, o idiot-in-chief anunciou que seu governo não mais daria contribuição para a Organização Mundial da Saúde.
É um gesto tão grave, tão louco, tão insano, tão despropositado, tão cruel, tão assassino quanto, no momento em que o Brasil se aproxima do auge da pandemia, o presidente da República trocar o ministro da Saúde. Tirar o piloto experiente para colocar um que não sabe de nada, como bem definiu Maria Helena RR de Sousa.
Duas horas de defesa da OMS, do isolamento social, nas três redes de TV de costa a costa. “From California to the New York island, From the Redwood forest to the Gulf stream waters”, como dizia Woody Guthrie, o cara que Bob Dylan começou a vida adorando, copiando.
A rigor, para bom entendedor, duas horas – no horário mais nobre da semana – de pau no idiot-in-chief. A meio ano da eleição presidencial.
Donald Trump – que ainda por cima teve que ver a mulher de Barack Obama e a de George W. Bush participarem do show juntas, uma completando a frase da outra – não deve estar dormindo bem nesta noite de sábado para domingo.
Já aqui, neste país periférico, fundo do fundo do Terceiro Mundo…
Sei lá se as oito horas de One World: Together at Home teriam feito a cabeça de sequer um dos fanáticos descerebrados que adoram Jair Bolsonaro.
Fanáticos descerebrados não mudam de idéia. São impermeáveis a fatos, argumentos, realidade.
Segundo o mais recente Datafolha, 36% dos brasileiros apóiam essa estultície, essa loucura genocida que é Jair Coronaro, o Capitão das Trevas.
Diante disso, fica difícil seguir a sugestão de Lady Gaga, ao abrir as duas horas finais do show com “Smile”, a canção escrita por Charles Spencer Chaplin, um gênio que, é bom lembrar, os Estados Unidos praticamente expulsaram de volta para sua Inglaterra natal, no auge da paranóia da caça às bruxas, quando radicais de direita enxergavam comunistas até mesmo na Casa Branca.
Mesmo com um show tão belo, fica difícil a gente sorrir.
19/4/2019