Tem surgido na minha cabeça, com alguma insistência, nos últimos dias, a canção “Dois e Dois: Quatro”. Hoje é pouquíssimo conhecida. É um poema de Ferreira Gullar: “Como dois e dois são quatro, / Sei que a vida vale a pena / Mesmo que o pão seja caro / E a liberdade, pequena”.
É um poema extraordinário, de uma riqueza, uma inventividade na junção de imagens, uma sequência de rimas ricas de babar – a pena, pequena, morena, serena, acena, açucena.
Açucena, meu! Açucena! “A noite carrega o dia / No seu colo de açucena”.
É extremamente curto: apenas 15 versos.
Não sei em que livro do poeta maranhense foi publicado “Dois e Dois: Quatro”. Não sei nem mesmo se o poeta publicou o poema como tal, como um poema, antes que Luiz Guedes e Thomas Roth criassem em cima daqueles 15 versos a melodia que os transformaram em canção.
“Dois e Dois: Quatro” foi gravada por Nara Leão em seu disco de 1966, Manhã de Liberdade. Foi o álbum em que saiu “A Banda”, lançada pouco antes como compacto, no mesmo exato tempo em que a canção de Chico Buarque vencia o festival da Record daquele ano de 1966.
Era o quinto álbum de Nara, no espaço ínfimo, ridículo, de apenas dois anos – seu primeiro disco, Nara, havia sido lançado em 1964 – exatamente 1964.
Todo o álbum é um panfletaço contra a ditadura militar que se instaurara em 1964 – a quarta-feira de cinzas que caíra sobre o país, como Vinicius de Moraes havia definido junto da melodia de Carlos Lyra na faixa número 1 do disco número 1 da cantora. Tem “Funeral de um lavrador”, trecho do poema de João Cabral de Mello Neto musicado pelo jovem Chico Buarque, e fecha com “Faz escuro mas eu canto”, poema de Thiago de Melo musicado por Monsueto Menezes.
Incrível como Manhã de Liberdade tem canções feitas a partir de poemas!
Falo do disco para lembrar o contexto, mas o que interessa é a canção que tem surgido na minha cabeça com alguma insistência. “Como dois e dois são quatro / Sei que a vida vale a pena / Embora o pão seja caro / E a liberdade pequena / Como teus olhos são claros / E a tua pele, morena / como é azul o oceano / E a lagoa, serena.”
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São absolutamente insondáveis os caminhos da cabeça da gente, e é impossível traçar uma narrativa lógica para explicar por que raio de motivo uma canção em particular passou a surgir. Mas pode haver algumas pistas.
Semanas atrás, ficou pipocando na minha cabeça a canção que Caetano Veloso compôs para Roberto Carlos cantar, “Como Dois e Dois”. Fiz um texto sobre isso. Dizia que “Como Dois e Dois” é uma das canções mais desesperadamente tristes da música brasileira – e não fala de dor do amor, de dor solitária. Fala de dor ampla, geral, irrestrita, a dor de um país inteiro.
Tem tudo a ver.
Caetano é um eterno citador, um eterno continuador de canções (no que viria a ser seguido, bem mais tarde, por Zé Miguel Wisnik). Cita em suas canções as canções de tempos atrás – sem avisar ao respeitável público que está fazendo citações. “It’s a long way” é uma colcha de retalhões de citações, assim como “Festa imodesta”, para dar apenas dois exemplos.
Quando fez “Como Dois e Dois”, no exílio, em Londres, em 1970 ou 1971, Caetano estava citando “Dois e Dois: Quatro”, o poema de Ferreira Gullar – de quem, aliás, já havia musicado um poema pouco atrás, em 1967, o maravilhoso “Onde andarás”.
“Como Dois e Dois” de Caetano é um hino triste contra a ditadura militar instaurada em 1964, que se valia do poema de Gullar que Nara havia cantado poucos anos antes também como um hino, um libelo contra a ditadura.
Os caminhos da cabeça da gente são absolutamente insondáveis, mas não é difícil achar lógica nessa coisa de que essas velhas canções ficam pipocando na minha cabeça.
O pão não está especialmente caro, nem a liberdade está tão pequena quanto em 1966. Mas, exatamente como o poeta dizia em “Dois e Dois: Quatro!”, vivemos num tempo de terror.
“Como um tempo de alegria / Por trás do terror me acena / E a noite carrega o dia / No seu colo de açucena / sei que dois e dois são quatro / sei que a vida vale a pena / mesmo que o pão seja caro / e a liberdade pequena.”
Vivemos num tempo absurdamente pior do que aquele de 1966: embora o pão não seja tão caro, embora ainda a liberdade não tenha sido roubada, estamos afundados no terror, e não dá para termos esperança de que virá depois um tempo de alegria.
Dois e Dois: Quatro
Ferreira Gullar-Luiz Guedes-Thomas Roth
Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena
– sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.
Este texto foi originalmente publicado na revista eletrônica Dom Total, em 19/6/2020.