Sinal amarelo para Biden

A candidatura de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos entrou em zona de turbulência, depois de voar em céu de brigadeiro desde sua vitória nas primárias. O candidato democrata se beneficiava da condução desastrosa de Donald Trump no combate à pandemia, bem como do seu impacto na economia.

A agenda eleitoral concentrava-se nestes dois temas e para eles Biden tinha uma resposta eficaz: o discurso da união nacional. O cenário começou a mudar nas últimas três semanas.

Um terceiro tema foi introduzido na disputa presidencial, a questão da violência, obrigando o candidato democrata a sair da zona de conforto em decorrência de sua queda nas pesquisas. Por sua vez, Trump trocou o discurso do “Make América Great Again” pelo da lei e da ordem, tendo como pretexto a violência em manifestações antirracistas praticada por grupos extremistas.

O favoritismo ainda é do democrata, mas parece estar declinante, conforme atesta o conceituado site Five Thirty Eight, que utiliza inteligência artificial para fazer uma infinidade de simulações diárias. Há três semanas elas indicavam uma probabilidade de vitória de Biden da ordem de 80% e de 20% para Trump. Há dez dias a diferença caiu para 73% a 27% e neste final de semana se estreitou para 59% a 31%.

Os dados provam o êxito da estratégia de levar medo aos eleitores diante da agressividade das manifestações em estados governados por democratas. Ela reproduz duas experiências vitoriosas dos republicanos em disputas presidenciais. A primeira, a vitória de George Bush em 1988, quando, com um discurso ameaçador, conseguiu tirar a vantagem de 17 pontos do então candidato democrata Michael Dukakis. A segunda, a eleição de Nixon em 1968, quando o republicano alcançou a vitória depois de adotar um discurso pregando lei e ordem, como resposta à onda de violência que varreu os Estados Unidos logo após o assassinato de Martin Luther King.

A candidatura de Nixon crescia quando as manifestações antirracistas descambavam para a violência e beneficiava era o candidato democrata se ocorriam em clima pacífico. Qualquer semelhança com a disputa entre Biden x Trump não é mera coincidência.

Desde o assassinato de George Floyd grupos minoritários têm se infiltrado nas manifestações antirracistas para promover vandalismo e saques. Enquanto Trump viu aí a chance de sair das cordas, Joe Biden deixou passar a oportunidade de, na Convenção Democrata, dar uma resposta assertiva à questão da violência. Ali já havia sinais de que o vandalismo e os saques inoculavam nos eleitores independentes e conservadores dispostos a votar no democrata – principalmente as mulheres dos subúrbios que concluíram os estudos em cursos superiores – a dúvida sobre a firmeza de Biden de combater a violência, se for o próximo presidente dos Estados Unidos.

O risco para sua candidatura é maior em virtude da característica da eleição americana, na qual nem sempre quem ganha no voto popular é o vencedor: a eleição se dá no colégio eleitoral. E nele pesam muito os “swing States”, estados decisivos que oscilam votando ora nos democratas, ora nos republicanos. São esses estados que podem fazer a balança pender para Trump, caso o democrata não conseguir estancar a sangria.

Biden sentiu o perigo. Saiu da sua zona de conforto para travar a batalha no terreno do adversário, adotando um discurso de condenação clara à violência praticada por extremistas de direita e de esquerda. Essa resposta é condição prévia para a batalha voltar a ser travada no teatro de operações no qual Trump tem telhado de vidro enorme: combate à pandemia e ao desemprego. Por aí pode recuperar o terreno perdido, até porque ainda faltam dois meses para a eleição.

A violência é o maior aliado de Donald Trump e elemento de sua estratégia. Não gratuitamente, trata como “legítima defesa” os atos praticados por grupos de extrema direita dos Estados Unidos. Uma das bases sociais do trumpismo são grupos como o Patriot Players ou as milícias de supremacistas brancos armados que partem para confrontos com manifestantes antirracistas. O saldo sangrento desses conflitos foi o assassinato de dois manifestantes negros por um adolescente branco em Kenosha, Wisconsin, e de um homem branco em um protesto antirracista, em Portland, Oregon.

Registre-se que o incidente de Portland ocorreu quando trumpistas fizeram uma carreata com 600 caminhões e se dirigiram ostensivamente para o local onde se realizava um ato antirracista.

Há muita hipocrisia no discurso da lei e da ordem de Trump. Na verdade, ele estimula a violência de suas bases e amplifica os conflitos, com objetivos políticos claros: tirar a diferença de Joe Biden e, se não for possível, estreitá-la ao máximo para não reconhecer a vitória do democrata e criar um clima de convulsão política com a mobilização de suas bases radicais. Não se espera de Trump postura idêntica à de Al Gore, que aceitou a derrota em uma eleição apertadíssima, depois da palavra final da Suprema Corte.

Há um pano de fundo para a recuperação de Trump que não deve ser subestimado. Os Estados Unidos são a pátria da democracia moderna. Mas ao lado da tradição democrática têm uma cultura autoritária do qual o trumpismo é sua principal expressão política. Pesquisas indicam que 40% dos norte-americanos são adeptos de valores autoritários.

Essa mudança na base da sociedade alterou o próprio caráter do Partido Republicano, cada vez mais uma agremiação de autoritários e cada vez menos dos conservadores. Isto se refletiu nas três últimas primárias dos republicanos, inclusive nas de 2020, na qual a maioria dos candidatos é trumpista. O desconforto dos republicanos moderados traduziu-se no apoio à candidatura Biden.

Joe Biden e Donald Trump são a expressão política do choque entre a cultura democrática que vem dos tempos dos pais fundadores da nação americana e a cultura autoritária incrustada nos Estados Unidos como parte da recessão democrática mundial. É a disputa entre a luz e a escuridão e seu resultado diz de perto à toda humanidade.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 2/9/2020. 

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