O tamanho da tela não importa

A Associação dos Correspondentes Estrangeiros em Hollywood parece ter tomado uma decisão: filme da Netflix não é filme.

Faz lembrar decisão dos caras da gravadora Decca que, em 1962, ouviram uns garotos de Liverpool tocarem umas músicas, e decidiram que aquilo não merecia ser gravado. Não impediram que os Beatles fossem os Beatles, mas fizeram, com isso, a fortuna de uma outra gravadora cujos caras eram mais espertos.

Havia três filmes produzidos pela Netflix concorrendo aos Globos de Ouro na categoria que mais importa, a de drama: O Irlandês, de Martin Scorsese, Dois Papas, de Fernando Meirelles, e História de um Casamento, de Noah Baumbach. Todos eles, cada um à sua maneira, realizadores já reconhecidos pela crítica e em várias outras premiações. Ao contrário dos garotos John, Paul e George, não eram novatos, desconhecidos. Muito ao contrário.

O Globo de Ouro ignorou solenemente os três filmes. O Irlandês, candidato a cinco prêmios, não levou sequer um. Dois Papas, candidato a quatro, não levou sequer um. História de um Casamento, candidato a seis prêmios, levou unzinho – um menor, o de atriz coadjuvante para Laura Dern.

Não é uma coincidência. É uma decisão, uma decisão política: para a Associação dos Correspondentes Estrangeiros em Hollywood, filme da Netflix não é filme.

E mesmo os únicos premiados em produções apresentadas na Netflix – Olivia Colman por The Crown e Stellan Skarsgård por Chernobyl – apenas confirmam: de empresa de streaming só se aceitam séries de TV. Filmes, não.

Quem notou isso, quem me mostrou isso foi Mary. Confesso que eu não havia somado 1 mais 1 para chegar a essa conclusão clara, límpida

E foi Sam Mendes, premiado como melhor diretor, que confirmou, com todas as letras, que Mary estava certa. Ao receber o prêmio, ele falou em alguma coisa como “filme exibido em tela grande”.

Isso é besteira.

Querer conduzir premiações de tal maneira que se defenda a tese de que filme é apenas aquele que é feito para exibição nas grandes salas, e que só terá permissão de ser visto na TV depois de uma janela de não sei quantos meses, é idiota.

É cego.

É besteira. É idiota. É tão idiota quanto Donald Trump ou Jair Bolsonaro.

A qualidade de um filme não depende do tamanho da tela.

Se dependesse do tamanho da tela, aqueles primeiros filmes para serem mostrados em Cinerama, aquele modismo de três projetores que durou, sei lá, uma década, seriam obras-primas maiores que os filmes de Bergman. Ford, Truffaut, Antonioni, Visconti.

Se dependesse dos efeitos de tela, as bobagens feitas em terceira dimensão, tipo Piranha 3-D, seriam melhores do que tudo que fizeram Dreyer, Renoir, Eisenstein, Hitchcock.

6/1/2020

2 Comentários para “O tamanho da tela não importa”

  1. Um acrescento: O tamanho da tela não importa (até um certo ponto, se o filme passar num smartphone acho que importa e muito como ainda hoje li no jornal Público esta citação de Spike Lee: “Peço aos alunos para levantarem a mão se tiverem visto um dado filme. E especialmente com os filmes de David Lean – A Ponte Sobre o Rio Kwai, Lawrence da Arábia, Doutor Jivago – eles dizem ‘sim, professor Lee, vi mas vi no meu iPhone’. E eu fico tipo ‘Oh meu Deus!”
    Mas não era sobre isso que eu queria escrever; era sobre o formato da imagem.
    Desde que apareceu o cinemascope fiquei fascinado com a tela larga e quando vejo filmes no formato clássico (4:3) sinto-me mal, como se tivessem tirado uma parte da imagem, fico encolhido, apertado.
    Claro que há um número enorme de excelentes filmes no formato antigo, não há nada a fazer.

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