Naquele tempo jurássico, pré-histórico, pré-computador, uns dez anos antes de a S. A. O Estado de S. Paulo entrar no maravilhoso mundo novo – comprando o Atex, o sistema editorial que já nasceu velho, ultrapassado –, o último a fechar as páginas da editoria deixava um recado na mesa do pauteiro que chegaria dali a umas poucas horas, de manhãzinha.
O recado era datilografado em uma lauda, ou de preferência em uma folha do bloco de diagramação, que tinha uma textura mais grossa que a da lauda.
Quem normalmente escrevia o recado na Reportagem Geral do Jornal da Tarde era o sub-editor, que ficava cuidando dos últimos detalhes do fechamento, coisas menos importantes, enquanto o editor ganhava o direito de ir pro bar pós-redação – ou, em alguns poucos casos, direto pra casa – cerca de meia hora mais cedo.
Na ocasião do recado de que falo, quem estava na pauta era Valdir Sanches, repórter especial, que, para sua tristeza, era desviado de função sempre que o titular Elói Gertel não estava, por um motivo ou outro.
O pauteiro do banco de reservas deparou-se com o recado assinado pelo editor, Ari Schneider, que começava assim:
“Valdir, meu filho:
1) O SV, junto com LC de A e PFP, realizou a façanha de ficar tomando cerveja até as duas da tarde. Como prêmio, foi dispensado do expediente, razão pela qual estou recadeando.”
LC de A é Luiz Carlos de Assis, e PFP, Pedro França Pinto, então copydesks da editoria. SV é o sub-editor – eu mesmo.
***
A lauda lendária, histórica, foi encontrada outro dia pelo Valdir, que, confinado, remexia no que chama de seus arquivos implacáveis. Infelizmente, não tem data. Era coisa do dia-a-dia, coisa mais normal do mundo; se fosse outra pessoa qualquer na pauta, teria jogado fora ao final do dia de trabalho. Como poderia o Ari pensar em botar a data?
Agora, tantas décadas depois, juntando uma informação e outra, dá para dizer que isso deve ser de 1981, 1982, por aí.
O fechamento era, naquele tempo, às 2 horas da manhã. Às vezes a gente atrasava um pouco, ou por excesso de trabalho, ou por perfeccionismo, ou porque esperava a conclusão de algum fato que ainda estava rolando. Depois do fechamento tinha o recado para o pauteiro, o arrumar a papelada, uma coisinha ou outra, então não era anormal que os últimos saíssem da redação por volta das 3h.
E aí era ir para o bar e sentar junto dos colegas que, àquela altura, já estavam chegando ao nível Humphrey Bogart de paz e felicidade. (Para quem não conhece a expressão, ou não se lembra, o nível Humphrey Bogart é aquele que se atinge após a segunda dose de hard. Havia gosto para tudo: os que preferiam cachaça, os do steinhager, os da vodca, os do uísque.)
***
O bar, na imensa maioria das vezes, era o Alemão, na Avenida Antárctica, caminho natural de volta para casa de 90% de todos nós, Havia vezes em que se ia ao Graxinha, o boteco um tanto infecto do posto Esso que existia na esquina da Marginal com Avenida Prof. Celestino Bourroull.
O Alemão não tinha hora exata para fechar. Iam ficando lá o Dagoberto, o dono, e o Sinval, o garçom, enquanto houvesse bêbado. Se a memória não falha, eles toleravam a gente até umas 5 e tanto, quase 6 da manhã. Aí – depois de jogar baldes e baldes d’água no chão, nos obrigando a ficar de pé do lado de fora, na calçada -, paravam de servir o chope.
Não era absolutamente incomum que alguns de nós, Alemão fechado, fôssemos tomar uma saideira na padaria ao lado, que estava abrindo mais ou menos por essa hora.
Se não estou enganado, o recorde de estadia em bar era, naquela ocasião, do Mário Lúcio Marinho (sempre nós…) e do César Camarinha, que uma vez tinham ficado tomando cerveja no Graxinha até cerca de 7 da manhã.
É claro, é óbvio que não me lembro hoje, quase 40 anos depois, de nada específico daquela noite-manhã.
Mas posso assegurar que Luiz Carlos, Pedro França e eu não estávamos nos propondo a bater recorde, de forma alguma, quando realizamos aquela façanha. Só aconteceu que o papo estava gostoso, e então fomos ficando, fomos ficando, fomos ficando…
E tem mais: acho que o Ari exagerou um bocado. Minha lembrança era de que cheguei em casa por volta de meio-dia.
***
Como o achado do Valdir – a folha do recado do editor para o pauteiro – tem grande valor histórico, transcrevo os demais itens.
“2) Anexo, recado do PS. (PS é Percival de Souza.)
3) Demo continua hoje cobrindo uma tal reunião de médicos que começou ontem e não acabou. E explica que não pôde avisar você porque estava no meio do polêmico debate. (Demo é Demócrito Moura.)
4) Anexo, recado sobre um novo festival de papagaios. Convém programar cobertura, porque sempre dá belas fotos. É domingo, acho.
5) Por enquanto,
Meus respeitos,
Ari
***
Só me permitam uma exclamação: puta que pariu, mas que time de jornalistas era aquele, meu Deus do céu e também da Terra!
1º/7/2020
Festival de papagaios? Que raios era isso?
Só pode ser coisa de bêbado, mas o Ari ainda não tinha ido para o bar. Ou já tinha ido e voltou?
Papagaios?
Ah, esses jornalistas da área de Política, gente séria, sisuda. Hard news, hard news…
O bom jornalismo inclui também coisas alegres, lúdicas, Mary Zaidan, como festival de papagaios, ou seja, pipas, ou seja, arraia…
Nem tudo que não é hard news é infotainment! Bah!
Sérgio
Mary, certa vez fui ao pauteiro , ou ao editor, e disse que queria fazer uma matéria: guerra nos céus de São Paulo. Fui muito festejado pela ideia, embora ninguém tivesse se lembrado de perguntar a propósito do que seria. Era sobre a garotada de bairro que empinava papagaios com linha cortante, preparada por eles para atacar e derrubar os dos outros. Deu matéria de página , com o título da minha proposta. Dá gosto mandar qualquer coisa para o Servaz Midas, porque vira ouro.
Não chame de qualquer coisa, Valdir. É um achado. Merece até uma moldura, para ficar na sala do Sérgio. Nome o quadro já tem: O Recado.