Não é só o auxílio emergencial

Até meados de junho havia um sentimento generalizado de que o governo Bolsonaro marchava para uma crise terminal. Seu péssimo desempenho diante da pandemia, as demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro, os conflitos com os outros dois poderes, a participação em atos antidemocráticos e a queda nas pesquisas davam a impressão de que o presidente estava à beira de um nocaute e o impeachment era apenas uma questão de tempo.

Mesmo analistas comedidos avaliavam que a derrocada era iminente. Restava apenas saber a velocidade do seu andar e a distância a ser percorrida.

Menos de dois meses depois, o quadro é outro. Bolsonaro saiu do canto do ringue, inverteu, para cima, a curva de sua popularidade. Seu avanço nos redutos eleitorais do PT já preocupa expoentes do petismo como André Singer, que vê o lulismo, pela primeira vez, diante de séria ameaça.

O que teria levado a uma mudança do cenário em tão pouco tempo?

É consensual a avaliação sobre o peso do auxílio emergencial, mas apenas ele não explica tudo. Uma recente live da Fundação Fernando Henrique Cardoso com os pesquisadores Maurício Moura, fundador da Big Idea Data, e Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (o primeiro especialista em pesquisa quantitativa e a segunda em qualitativa), desnudou um pouco o emaranhado de fatores responsáveis pela recuperação da aprovação do presidente.

A razia do auxílio de R$ 600 na base social do lulo-petismo se explica porque nas cidades médias e pequenas, particularmente nos grotões do Nordeste, esse valor representou um choque de renda, com impacto direto no consumo das pessoas e em uma economia cujo peso na nossa formação foi bem descrito pelo livro História da Riqueza do Brasil, de Jorge Caldeira.

Paradoxalmente, a pandemia provocou um “boom” em municípios onde pessoas beneficiárias do Bolsa Família dobraram ou triplicaram sua renda de uma hora para outra. Segundo Moura, pesquisa recente da Big Ideia Data detectou que oito em cada dez beneficiários do auxílio emergencial das pequenas e médias cidades acreditam que o benefício será permanente e com esse valor.

Não se sabe qual será o humor dessa população se, ou quando, o sonho acabar. Mas é fato que o bolsonarismo se deslocou das grandes cidades e regiões metropolitanas para as cidades pequenas e médias. E das classes média e alta para as D e E.

Nas pesquisas qualitativas aparecem razões mais profundas para a resiliência do bolsonarismo. Segundo o levantamento coordenado por Esther, a imagem do presidente foi afetada durante os meses de pandemia, mas o dano tem sido neutralizado. Para a população mais pobre, ele foi irresponsável no combate à Covid-19 e “desumano ao debochar dos mortos”, o que é grave para quem se diz terrivelmente evangélico.

Há, contudo, o outro lado da moeda. A estratégia pautada na dicotomia vida versus economia produziu resultados. Para os setores populares, a orientação fique em casa é um luxo ao qual não se podem dar ao direito. As pessoas têm medo da doença, mas têm muito mais temor de morrer de fome, perder o emprego ou ver sua família passando por necessidades. Ou seja, a narrativa construída pelo governo impactou nessa população desprotegida.

De acordo com as qualis, Bolsonaro teria ainda logrado êxito na terceirização da culpa pelas mortes. Pasmem, em São Paulo elas são atribuídas mais ao governador do que ao presidente.

A resiliência se explicaria também porque ainda são fortes alguns dos fatores responsáveis pela eleição de Bolsonaro: a “criminalização do política”, a  “cristianização da esfera pública”, com os valores da religião fazendo parte do embate político, e a “militarização da política”, na qual valores como hierarquia, disciplina, controle, ordem, segurança também são aspirações dos mais pobres.

A pauta dos valores está no centro do cotidiano dessas pessoas e a família é a principal estrutura organizacional da periferia. Daí vem parte importante da resiliência do presidente, por ser identificado como um defensor da família e de seus valores. Essa é também fonte do peso dos evangélicos. São eles que chegam junto às pessoas necessitadas. É como respondeu uma moradora do Complexo da Maré: “Aqui ou é o crime ou a Igreja. Vocês (o Estado) não existem”.

Sentimentos como empoderamento, empreendedorismo, meritocracia aparecem de forma muito clara e há um forte rechaço das causas identitárias. Elas são vistas como uma ameaça aos valores da família ou como defensoras de privilégios. De forma reducionista, criticam movimentos identitários por ficarem lutando pelo negro, pela mulher, em vez de lutar pelo trabalhador, pelo emprego. Essa crítica é feita ao próprio PT, que teria deixado de lutar pelos trabalhadores.

Avesso ao populismo que alavancou Bolsonaro e o PT de Lula, o chamado campo democrático tem sido incapaz de dialogar com os valores morais e religiosos dessa população. No caso do PT, a estratégia de carimbá-lo como o partido antifamília colou. Desmontar essa percepção é quase uma missão impossível.

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