Desde os tempos de Ulysses Guimarães a Câmara de Deputados não tinha uma liderança que simbolizasse tanto a autonomia e a independência do Poder Legislativo como Rodrigo Maia. Paralelos entre o Senhor Diretas e o atual presidente da Câmara são perigosos porque são personalidades diferentes em contextos históricos totalmente distintos. Mas, como o saudoso Ulysses, Maia tem a habilidade, o gosto e o traquejo da grande política. Sabe como poucos movimentar suas peças e desnortear quem se opõe a seus planos.
Seu mais recente movimento foi a desidratação do Centrão, uma jogada semelhante ao roque no xadrez. Com o anúncio do desligamento do MDB e DEM, protegeu sua rainha do ataque de Jair Bolsonaro para ter na presidência da Câmara um aliado seu. A eleição acontece no ano que vem, mas desde já o Palácio do Planalto vem cacifando a candidatura de Arthur Lira, um político mais acostumado à pequena política do “hay goberno? se hay soy a favor”.
Fazer o presidente da Câmara é estratégico para Bolsonaro, em sua “guerra de posição” para tentar se reeleger em 2022. Rodrigo Maia botou areia na engrenagem numa tacada que retira do Centrão nada menos do que 63 deputados. O objetivo é construir um novo bloco do qual provavelmente farão parte PSDB, Cidadania, PV e Podemos, eixo de uma candidatura para a presidência da Câmara, provavelmente do deputado paulista Baleia Rossi.
A articulação de Maia não se limitará a essas forças. Buscará apoios a montante e a jusante. Na base do governo e na oposição.
A peça de resistência será a defesa da autonomia do Parlamento, marca de sua gestão. Ainda é cedo para saber se esse movimento se esgotará na eleição do futuro presidente da Casa ou se terá objetivos mais ambiciosos, como o de criar uma alternativa para 2022 capaz de unir o país.
Parece uma missão impossível, mas, como dizia Ulysses, navegar é preciso. Há menos de um ano ninguém diria que Joe Biden uniria os Estados Unidos, no entanto vem conseguindo fazê-lo. Isso não quer dizer que Maia seria o nome da união, mas necessariamente passará por ele.
Conquistou esse status pela forma inteligente como se posicionou em relação ao governo Bolsonaro. Jamais se assumiu como oposicionista, mas, na prática, fez uma “oposição positiva”, para resgatar um termo de San Tiago Dantas. Bolsonaro ainda está tonto diante do passeio que levou na votação da PEC do Fundeb, na Câmara. Ali a candidatura de Arthur Lira começou a fazer água quando tentou, sem sucesso, adiar a votação.
Bolsonaro não pode acusá-lo de adotar pautas-bombas só para boicotar o governo. A postura de Maia foi propositiva, como na reforma da Previdência, que só andou porque o Congresso tomou para si o protagonismo. Quando veio a pandemia, o Parlamento fez o contraponto ao negacionismo do presidente e aprovou todas as medidas necessárias para fazer frente aos seus efeitos perversos.
O auxílio-emergência, essencial para a sobrevivência de 50 milhões de brasileiros, só chegou a R$ 600 porque o Congresso se posicionou firmemente. Deu segurança jurídica ao Executivo e à equipe econômica para realizar as despesas necessárias sem o risco de enfrentar um processo por infringir a Lei da Responsabilidade Fiscal.
Maia não jogou gasolina na fogueira. Ao contrário, adotou uma postura prudencial ao engavetar os 50 pedidos de impeachment de Bolsonaro. Desagradou a oposição, mas teve a sabedoria de perceber que numa conjuntura de pandemia o impeachment só agravaria a crise tripla na qual o Brasil está mergulhado. Nem por isso deixou de ser firme na defesa das prerrogativas do Parlamento e da democracia.
Deu-se o inusitado em sua gestão. Depois de longo e tenebroso inverno, a imagem do Congresso melhorou. Ainda é péssima, mas a curva que levava sua aprovação ladeira abaixo se inverteu. Há uma explicação lógica: a atual legislatura dedicou-se mais ao atacado da política do que ao varejo. A pequena política ainda persiste, até porque seria ilusão acreditar que desapareceria em tão curto espaço de tempo. Além do mais, os interesses paroquiais só são ilegítimos quando se contrapõem aos interesses maior do país.
Ulysses e Maia. O senhor Diretas nunca foi um campeão de votos, amargou derrota acachapante na primeira eleição para presidente, em 1989, após a redemocratização. No entanto, foi o homem forte dos primeiros anos da Nova República.
Rodrigo Maia também nunca foi um fenômeno eleitoral, mas é hoje o grande nome do Parlamento, fadado a ter um papel decisivo nesta quadra histórica. Que a fortuna lhe reserve um destino melhor do que o timoneiro da redemocratização.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 29/7/2020.