Depois de criticar o ministro Alexandre de Moraes e afirmar que a suspensão da posse de Alexandre Ramagem na diretoria-geral da Polícia Federal quase criou um “incidente institucional”, o presidente Jair Bolsonaro atribuiu sua reincidente descompostura a um “desabafo”. Mas estava dada a senha. No feriado da sexta-feira, as redes foram pilhadas freneticamente por xingamentos a Moraes e ao decano Celso de Mello – que teria privilegiado o ex-ministro Sérgio Moro -, com a repetição da frase “O STF opera em modo golpe de estado” e a hashtag #GolpedeEstado.
Difícil atribuir ao acaso.
Tática idêntica fora aplicada há duas semanas contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, algoz quase esquecido pelo bolsonarismo depois da crise provocada pela saída de Moro. No caso de Maia, Bolsonaro abriu a artilharia no dia 17 de março, em entrevista à CNN Brasil, quando acusou o deputado de agir em parceira com o governador de São Paulo, o desafetíssimo João Doria. “Parece que a intenção é me tirar do governo”, disse. Bastou para que o #ForaMaia virasse emergência e batesse recordes nas redes. Dois dias depois, as faixas Fora Maia eram vistas em manifestações contra o Legislativo e o Judiciário, inclusive em Brasília, em frente ao QG do Exército, local em que Bolsonaro improvisou palanque para aderir ao protesto.
Doria e o governador do Rio Wilson Witzel já tinham sido alvos da mesma prática, nos mesmos moldes. Primeiro o presidente fala, preferencialmente em entrevista a veículos com credibilidade, para depois a máquina de trituração de reputações agir. Ontem, dia de seu depoimento à PF, Moro virou o Judas da vez.
Mas não há nada tão ruim que não possa ser pior.
Essa robusta rede – real ou robótica – opera da mesma forma na desinformação sobre a pandemia. Bolsonaro fala que o surto é uma gripezinha, um resfriadinho, e isso se multiplica em likes. Defende a cloroquina e o medicamento some das farmácias; diz que “esse problema do vírus está acabando” e milhares reproduzem a fala.
Difusor oficial de fake news, o presidente prejudica o combate à Covid-19 e estimula toda sorte de comportamentos condenáveis. Incentivou o relaxamento da quarentena, errando em todas as pontas: eliminou a chance de fôlego à rede pública de saúde, sem que isso aliviasse os prejuízos à economia. Uma insanidade.
E ainda tem o desplante de dizer que o isolamento social não funcionou, quando sabe – e o seu Ministério da Saúde assegura – que sem ele a pane no SUS já estaria instalada há semanas.
Insiste em sair às ruas. Ontem, repetiu o desatino em oposição às instruções do ministro da Saúde que ele demitiu, Luiz Henrique Mandetta, e do novo, Nélson Teich. Com isso, ainda que em número muito inferior do que seus fãs dizem arrebanhar, carros desfilam disparando buzinas em frente a hospitais, como se vê em São Paulo, epicentro da crise sanitária no país. Mais do que alienação aos ditos da ciência, uma atitude desumana e cruel com doentes e seus familiares.
Cenas de militantes que se acham guardiões da Praça dos Três Poderes, embandeirados e empoderados, agredindo profissionais de saúde que, em silêncio, reverenciavam seus mortos, ou de trabalhadores de Campina Grande, na Paraíba, forçados por seus patrões a pedir, de joelhos, a reabertura do comércio – uma tirania imperdoável – são consequências das leviandades em série do presidente.
Todo líder de uma seita tem responsabilidade sobre a crença que dissemina. Para o bem ou para o mal. Mas quando se prega o ódio, os danos são graves, por vezes irreparáveis.
Messias só no nome, Bolsonaro, ao contrário do que disse, parece crer que é fazedor de milagres. Terá agora de convencer que a manjada banda podre da política é composta por gente honesta, por cidadãos do bem. De novo, apostará no cabresto virtual.
Passa da hora de o Brasil real mostrar que está muito além dos devotos digitais que o presidente manipula ou dos incivilizados fanáticos que se apresentam em atos antivida.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 3/5/2020.