Água quente para o banho

Tivesse eu podido roubar uma das nove mulheres de Picasso e raptaria, com o ardor de um Rómulo, Françoise Gilot. Não só pela doçura do seu redondo talento de pintora, mas também pela bela cabeça morena, comandada pela arguta simetria das maçãs do rosto a que a velhice daria, depois, proeminência não destituída de ternura. E nem sequer falei do seu peito comovente que negava, distraído, a lei da gravidade.

Foi esse aroma flutuante que chegou à mesa a que presidia Pablo Picasso. O restaurante era o Le Catalan, 25 rue des Grands Augustins, margem esquerda do Sena, reinava em Paris a besta nazi de 1943. Françoise tinha 21 anos e jantava com outra amiga pintora e o actor Alain Cluny. Picasso conhecia-o e logo veio, prato de cerejas na mão, sentar-se à mesa deles. (Quem, podendo, não andaria sempre com um prato de cerejas na mão!)

“O que é que fazes?”, “Sou pintora”, “Boa piada. Uma rapariga como tu jamais podia ser pintora.” Um ao outro, foi o que disseram. Ou dispararam, que era tempo de guerra. A implicância provocadora desencadeia, sabe-se, erupções e terramotos. Os 21 anos de Florence adivinharam nos 61 de Picasso a catástrofe, uma catástrofe que – seu legítimo livre arbítrio – não queria evitar.

E já solicito o encarecido apoio dos leitores: o restaurante, Le Catalan, tem toda a responsabilidade. Há sítios que rimam com o milagre e a epifania – duas estranhas máscaras que escondem o apocalipse. À mesa de Picasso sentavam-se a bela Nusch e o lírico Paul Éluard, Dora Maar, amante e musa que o pincel do andaluz imortalizou como “a mulher que chora”. E foi no Le Catalan que o poeta parisiense Léon-Paul Fargue tombou nos braços de Picasso, com um inopinado AVC. Ao Le Catalan viriam, mal a bota nazi perdeu a sola, Dorothea Tanning e o seu Max Ernst, Hans Bellmer, e mais viriam Cocteau, Paul Valéry, Boris Vian. Ali se inventaria o melhor do existencialismo, uma balada, um hino, que rezava assim: “Nada mais tenho na existência / do que a essência que me definiu / porque a existência precede a essência / e por isso o dinheiro me fugiu.”

Do Le Catalan ao estúdio de Picasso foi um fósforo. Ofereceu-lhe a água quente que, nesse tempo de guerra, o estúdio ainda tinha, para os banhos que quisesse. Françoise batalhava então contra esse fino entrave da virgindade, que persistia, irrevogável, pela falta dos homens que conhecia, clandestinos na Resistência. Picasso era invasivo e dominador – beijou-a de surpresa a primeira vez, e ela, para surpresa dele, beijou-o de volta –, mas Françoise tem dois desenhos autobiográficos, que traçam com ironia os princípios constitucionais da relação deles, que garantiram a sua feminina autonomia. A um chamou “Adão forçando Eva a comer a maçã”, ao outro “Não me toques”.

Separado embora, Picasso ainda era casado com Olga Koklova – a lei francesa proibia-lhe o divórcio. Casamento suspenso, repartira-se por duas mulheres. Primeiro, Marie-Thérèse Walter, jovem, de corpo solar e saudável, seduzida aos 17 anos; depois, Dora Maar, que, quando soube de Françoise, se cobriu com o lençol da depressão. Marie-Thérèse procurou Françoise e avisou-a: que não tentasse ocupar o lugar dela. “Não se inquiete, o lugar que ocupei estava vazio.”

Ninguém ocupara nunca o lugar que Françoise teve na vida de Picasso. Fascinada pelo espírito lúdico, pela sedutora força física, pela paixão exsudante dele, Françoise tinha vida própria e deixou-o quando quis e entendeu. E disse-lhe. Picasso respondeu: “Nenhuma mulher deixa um homem como eu.” Até Picasso se pode enganar.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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