A morte de 241 pessoas não é normal

Com o fim do motim dos policiais do Ceará, o Brasil deveria aproveitar a oportunidade e mudar a forma displicente com que vem tratando as insubordinações que violam a Constituição, deixam a população indefesa e contribuem para o aumento de assassinatos no país. Há mais de 20 anos motins acontecem e pouco depois, para espanto da nação, os insubordinados são anistiados. Ora por iniciativa de governadores e Assembléias Legislativas, ora do Congresso Nacional e do presidente da República.

É dessa maneira que os motins se retroalimentam e multiplicam. Nos últimos anos tivemos duas anistias amplas, gerais e irrestritas a policiais e bombeiros: em 2011, promulgada por Dilma Rousseff, e em 2016, por Michel Temer.

No bojo da sublevação de policiais há quebra de hierarquia e se instala a anarquia nos quartéis, com a conivência da cadeia de comando. O novo exemplo disso veio do coronel da Polícia Militar cearense, Antônio Agnaldo Oliveira, diretor da Força Nacional de Segurança. Na assembléia que marcou o fim do motim do Ceará, como se fosse líder de central sindical, o coronel Agnaldo chamou os policiais amotinados de “corajosos” e “gigantes”.

Os políticos também dão mau exemplo. Em 2016, durante a votação do projeto de lei que anistiava policiais e bombeiros de 19 estados, a então senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) defendeu o perdão como “uma questão de justiça”, apesar da Constituição e o Código Penal Militar serem claríssimos na proibição de greves de corporações militares. Na mesma votação, o senador João Capiberibe (PSB-AP) protestou contra a prisão de militares insubordinados, considerando a medida como herança da ditadura!

Mesmo quando há um ponto fora da curva, como aconteceu em 2017 no motim da polícia do Espírito Santo, a mudança de atitude vai por água abaixo por causa da demagogia política. À época o então governador Paulo Hartung (hoje sem partido) não cedeu à chantagem e expulsou da corporação os principais responsáveis pela sublevação cujo saldo foi a morte violenta de 219 pessoas. Pois bem, uma das primeiras medidas do seu sucessor, Renato Casagrande (PSB), foi anistiar os amotinados de 2017.

No Ceará houve nova quebra de paradigma, mas ainda é cedo para saber se vingará. O hovernador Camilo Santana (PT) não cedeu à chantagem e encaminhou à Assembléia do Estado uma emenda constitucional que proíbe anistia a policiais amotinados. No Congresso Nacional, hoje é praticamente zero a probabilidade de se votar uma nova anistia.

A despeito de divergências políticas, o governo estadual e o governo federal encontraram um terreno comum e atuaram num clima colaborativo, reconhecido pelo próprio governador cearense.

Mas nem tudo foram flores nessa relação.

O clã dos Gomes e o ministro Sérgio Moro disputaram os louros pelo fim do motim mas saíram arranhados. Os Gomes, porque Ciro tem aquela lamentável incontinência verbal e seu irmão Cid, que, tresloucado, esqueceu sua condição de senador da República ao protagonizar, de forma irresponsável, o episódio em que jogou uma retroescavadeira nos insubordinados para tentar tomar um quartel ocupado.

Já o ministro deixou expostas as dificuldades do governo Bolsonaro de ter uma postura mais firme diante de rebeliões das corporações policiais, um dos redutos eleitorais do presidente.

Difícil concordar com a avaliação de Moro segundo a qual tudo ocorreu dentro da normalidade. Não é normal a morte por violência de 241 pessoas – quase 28 por dia – durante o motim. Tampouco dá para tolerar policiais encapuçados que depredaram e sequestraram viaturas policiais, além de terem ocupado, manu militari, quartéis da corporação.

A mudança de atitude não acontecerá enquanto houver partidarização da polícia ou instrumentalização dela por lideranças oportunistas que fazem dos motins trampolim para obter mandato parlamentar. Os cabos Dacciolos, Sabinos, Julios ou sargentos Idallícios ou soldados Priscos deram esse pulo do gato. São resultado da banalização da anistia a amotinados e da pusilanimidade no combate de insubordinações que afrontam a Constituição.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 4/3/2020.

 

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