A guilhotina do cancelamento

Devemos ao iluminismo do século 18 o direito ao dissenso e ao livre pensamento. Antes, as divergências de idéias eram resolvidas pela via da eliminação física. Basta lembrar os tempos da Santa Inquisição em que os hereges iam para a fogueira. Ou que em 1616 Galileu Galilei, cientista, físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, entrou para o index da Congregação do Santo Ofício e foi ameaçado de pena de morte ao comprovar e defender a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, segundo a qual a Terra e os planetas giravam em torno do sol. Teve de se desdizer publicamente, mas não deixou de estar certo.

A Revolução Francesa, com seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade, abriu uma nova era, a idade da razão, produto do século das luzes. Os pensadores do iluminismo, John Locke, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, nos deixaram um legado inestimável.

Nem por isso a sociedade moderna deixou de viver momentos de supressão das discordâncias das idéias pela via da violência, da eliminação física e da destruição de reputações. O nazismo alemão, a ditadura soviética, a revolução cultural chinesa, o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos são exemplos disto. Ao final do século 20, com a derrocada do “socialismo real”, o ciclo do totalitarismo parecia ter se encerrado e os valores liberais pareciam ser os grandes vitoriosos.

Como a história não é linear, voltamos a viver novos retrocessos no século 21. A fogueira onde os “hereges” contemporâneos são queimados não é mais a do Santo Ofício. Nem a guilhotina que serviu para decapitar 2.794 “inimigos da Revolução” em Paris. Hoje quem desempenha este papel são as redes sociais, onde o fenômeno da cultura do cancelamento reina livre, leve e solto.

Por meio dele, ataca-se a sobrevivência econômica de empresas e pessoas, destroem-se reputações de forma irreversível. Pratica-se um revisionismo histórico que ignora as circunstâncias de cada era, como se fosse possível analisar fatos acontecidos há mais de cinco séculos com a métrica e valores de hoje.  Figuras históricas como Cristóvão Colombo, Monteiro Lobato e Princesa Isabel são submetidas ao crivo da nova inquisição.

Do ponto de vista ideológico, a cultura do cancelamento é pluralista. Identitaristas de esquerda e de direita a praticam exaustivamente. Um artigo da antropóloga Lilia Schwarcz sobre o álbum visual Black is King, da cantora Beyoncé, foi o suficiente para uma campanha de difamação deflagrada por movimentos negros, furibundos porque a antropóloga criticou o álbum por glamourizar a negritude. Levada ao pelourinho, teve de fazer o “mea culpa”, muito embora não haja uma só vírgula de racismo em sua análise.

Caso semelhante aconteceu com a autora da série Harry Porter, J.K Rowling, execrada nas redes sociais por ter dado uma declaração na qual dizia que havia diferenças biológicas entre o homem e a mulher. Não deu outra, foi acusada de machista e teve de se explicar publicamente.

A tática de atacar a sobrevivência das pessoas tem se mostrado eficaz. A influenciadora digital Gabriela Pugliesi teve prejuízo de R$ 2 milhões depois de ser cancelada por ter dado uma festa durante a pandemia. Nos Estados Unidos, um pesquisador contratado por uma consultoria progressista foi demitido por ter divulgado no Twitter um estudo no qual mostrava que, nos anos 60, protestos anti-racistas violentos aumentavam o percentual de votos nos candidatos republicanos e quando aconteciam de forma pacífica favoreciam os democratas nas eleições.

Em vez de refletir sobre o estudo, militantes da causa anti-racista usaram as redes sociais para exigir a demissão do pesquisador, por ver em seu estudo uma crítica às manifestações em protesto ao bárbaro assassinato de George Floyd.

Uma frase infeliz, um gesto mal interpretado são motivos para destruir reputações construídas ao longo de toda uma vida. O médico Drauzio Varella deveria ser uma unanimidade nacional. Em vez disso, foi vítima de uma campanha difamatória por ter dado um abraço numa transexual presa por assassinar e estuprar uma criança.

A cultura do cancelamento reproduz o que o macarthismo fazia nos anos 50. O clima de intolerância, de supressão do contraditório, tornou-se irrespirável. É preciso abrir as janelas para os ventos da liberdade reoxigenar a humanidade.

A carta de 150 intelectuais americanos das mais variadas tendências políticas, divulgada no mês passado, foi um sopro de esperança. Entre seus signatários estão personalidades de esquerda como o linguista Noam Chomsky, escritores como o consagrado Salman Rushdie, autor de Os Versos Satânicos e vítima da intolerância do fundamentalismo islâmico, ou a autora e roteirista de Harry Porter, J. K. Rowling.

Diz a Carta: “A livre troca de informações e idéias, força vital de uma sociedade liberal, tem diariamente se tornado mais restrita. Enquanto esperávamos ver a censura partir da direita radical, ela está se espalhando também em nossa cultura: uma intolerância a visões opostas, um apelo à vergonha pública e ao ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas com uma certeza moral ofuscante.”

Os autores tocam num ponto nevrálgico. Não está em questão a justeza da causa dos direitos da mulher, dos negros, da diversidade de gênero, dos índios. Mas uma visão distorcida dessas causas findam por desservi-las ao segregar, em vez de unir. De certa forma, essa crítica já foi feita por Mark Lilla, em seu livro O progressista de ontem e o de amanhã. O antropólogo e historiador Antônio Risério também pôs o dedo na ferida ao apontar que movimentos que nasceram inclusivos se tornaram excludentes ao caírem no identitarismo.

O grande mal da cultura do cancelamento é seu reducionismo. O mundo é bem mais complexo do que o simplismo das redes sociais e suas guilhotinas.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 19/8/2020. 

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