A carta-rolha do PT

Maior perdedor ao lado de Jair Bolsonaro, o Partido dos Trabalhadores sai do segundo turno das eleições municipais em meio a um transtorno semelhante ao do antigo PCB, quando veio à luz o famoso Relatório Khrushchov sobre os crimes de Stálin. À época, comunistas não se entendiam e cada cabeça era uma sentença. A crise de identidade foi de tal ordem que, em reunião da direção do Partidão, Carlos Marighella caiu em choro compulsivo, sem conseguir articular coisa com coisa.

Com desempenho eleitoral pior do que o de 2016, o PT não elegeu sequer um prefeito nas capitais do país. De quebra, antigos aliados, como o PDT e o PSB, saíram de suas asas e no campo da esquerda projetou-se Guilherme Boulos, a primeira liderança com vôo próprio capaz de ofuscar Lula. Após a derrota, a cúpula partidária parece uma Torre de Babel, sem entender o pronunciamento das urnas.

Não há consenso sequer sobre se houve derrota. No alto de seu daltonismo, a presidente do partido, Gleisi Hoffman, viu um Partido dos Trabalhadores vitorioso. Assim, não há autocrítica a fazer e, como sempre, a direção acertou. A narrativa de Gleisi tem o objetivo de interditar o debate para preservar a burocracia partidária. Sobretudo Lula, que vai perdendo a condição de semideus até mesmo entre petistas. Já o senador Jacques Wagner viu um zero a zero. O PT não ganhou nem perdeu. Durma-se com um barulho desses.

Há quem culpe a Covid pela derrota, por impedir Lula de sair pelo país afora fazendo campanha e a militância de ir às ruas. Esquecem um detalhe: nem de longe Lula é o mesmo cabo eleitoral de antigamente. Se até dois anos atrás candidatos disputavam a tapas o seu apoio, em 2020 tornou-se tóxico, e mesmo candidatos de esquerda o esconderam de seus palanques eletrônicos. Alguém viu presença expressiva de Lula no programa de TV de Boulos? Viu Chico Buarque, Wagner Moura, Sônia Braga, Teresa Cristina, mas o caudilho não. Até live com Caetano Veloso Boulos fez.

Onde Lula teve presença mais ostensiva, como no Recife, a derrota de Marília Arraes fala por si só.

Na linha de buscar justificativas para a derrota, a direção petista delira. Em artigo divulgado no site do partido, afirmou: “O Brasil viveu nesse segundo turno a eleição mais suja de sua história, retrocedendo o país aos tempos da República Velha”.

Há, porém, vida inteligente dentro do PT. Correntes minoritárias reivindicam a antecipação do congresso partidário para renovar a liderança. É uma minoria, mas dirigentes como Alberto Catalice não tapam o sol com a peneira: “Não se pode converter derrota em vitória. Derrota é derrota.” Segundo ele, o PT está preso ao passado e Lula tem relação direta com o resultado eleitoral de 2020. Catalice foi mais longe: cometeu a heresia de recomendar que Lula se aposente e abra espaço para novas lideranças.

O Partido dos Trabalhadores está no divã, não há dúvidas. Levará tempos até compreender – se é que o fará – as causas de sua derrota acachapante. Desde sua fundação, o Brasil mudou profundamente pouco tendo a ver com aquele país do mundo fabril dos anos 80, época de sua fundação. Quando envelheceu, o PT tentou manter sua hegemonia à base do nós versus eles, desconectando-se da sociedade, sem fazer acerto de contas dos seus desvios éticos.

Até agora não entendeu o país que saiu das urnas, nas quais os grandes vitoriosos foram os partidos de centro, com um discurso de moderação e de união. Ciro Gomes e o PSB perceberam isso, descolando-se da esquerda mais intransigente e buscando construir pontes com todo o espectro do centro. Dificilmente embarcarão em uma “frente de esquerda” em 2022, como defendem alguns setores.

Não há nenhum desdouro em ir para o divã. Desde que se tenha humildade suficiente para reconhecer que estará isolado se insistir em ficar preso ao caixão de Lula, sem nada oferecer de novo ao país. Ser humilde implica em deixar de ouvir apenas a própria voz e de se considerar dono da verdade. Como as urnas demonstraram, o eleitor se cansou da política binária

Fará o Partido dos Trabalhadores o seu aggiornamento a ponto de se reencontrar com os brasileiros? Difícil crer. Sua direção tentará de tudo para se manter no controle da máquina partidária. Diante do risco de perder o controle da situação, o mais provável é que Lula repita Luís Carlos Prestes, que mandou encerrar o debate sobre o stalinismo em nome da “unidade do partido”.

À época, a ordem de Prestes ficou conhecida como a “carta-rolha”.  Foi contestada em artigo do jornalista João Batista Lima – “não se pode interditar o debate que está em nossas cabeças”. A conferir se Lula terá força para silenciar o que está na cabeça de muitos petistas.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 2/12/2020. 

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