Um país ainda mais injusto

Lula está livre. E o presidente Jair Bolsonaro, que, para estranhamento de muitos, reagiu inicialmente com a mudez, deve ter comemorado no silêncio.

Nas contas do capitão, que só chegou onde chegou vitaminado pela rejeição do eleitor à trinca Lula-PT-corrupção, os demônios da esquerda apontados à distância, frequentadores do regime totalitário de Nicolás Maduro, das manifestações chilenas ou do impalpável Foro de São Paulo, agora existem. E se materializam no adversário perfeito, que não pode ser candidato.

Solto, Lula continua culpado e condenado em segunda instância, portanto, impedido de disputar eleições pela Lei da Ficha Limpa. Tem mais uma condenação pendente e é réu em outros cinco processos. Ou seja, livrou-se dos monstros da cadeia, mas não da capivara.

Mas no país em que o conchavo entre poderosos sempre prevaleceu, não é difícil crer que as ocorrências da semana passada façam parte de uma meticulosa armação, com ganhos para Bolsonaro e Lula, ambos somando para si enquanto o país se lasca. Um enredo que contemplaria o impedimento de prisão em segunda instância para soltar Lula e o futuro julgamento da suspeição de Sérgio Moro na condenação do ex.

Lula e seus advogados preferiam apostar as fichas na suspeição e consequente anulação do processo, mas foram alertados do risco. Ainda que o vazamento de gravações entre procuradores da Lava-Jato e Moro publicados pelo Intercept possa influenciar os ministros da Corte, a forma ilegal da obtenção dos áudios e a possibilidade de que tenham sido manipulados criam desconfianças.

Nada mais lógico então que concordassem com as vantagens do impedimento da condenação na segunda instância, uma vitória perene que fará Lula nunca mais voltar para a cadeia mesmo se vierem novas condenações. Com 74 anos e apenas um dos seis processos já apreciado pelo STJ, terceira das quatro Cortes em que agora um réu terá de ser julgado antes de ser preso, o ex obteve na quinta-feira garantia de liberdade. Com o voto de Minerva do presidente do STF, Dias Toffoli.

O mesmo Toffoli que já acumulara créditos com Bolsonaro ao aliviar a barra do filho 01, senador Flávio, suspendendo as investigações da rachadinha e proibindo o uso de informações do antigo Coaf sem autorização judicial.

Para Bolsonaro há outras contrapartidas, preciosas para a campanha de 2022, já em curso: é melhor ter Lula livre e culpado do que Lula inocente, libertado por má-conduta de seu ministro da Justiça no processo de condenação do ex.

Com o “eles” que até pouco tempo era o “nós” fora da cadeia mas condenado, a corda que separa os extremos – bolsonaristas e lulistas – tende a ter a tensão aumentada, algo já deplorável hoje, e com chances de piorar. Com mais danos para o país, aprisionado na política bipolar e na imbecilidade do digladio nas redes sociais.

Lula está livre, não vai voltar nunca mais para a prisão. Bolsonaro agora tem um opositor que canalizará o ódio contra ele, mas não tem adversário para enfrentá-lo nas urnas. Um arranjo e tanto.

Enquanto isso, o país que mantém nas suas cadeias mais de 350 mil presos provisórios, que nem julgados foram mas continuam atrás das grades, moldou um entendimento constitucional de prisão só depois da condenação na 4ª instância com o intuito único de soltar Lula. Já começa a ver a abertura da porteira para outros condenados do primeiro escalão e com ela o aprofundamento da desigualdade, com o cruel descumprimento do principio maior da Constituição, esse sim pétreo, de que todos são iguais perante a lei.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 10/11/2019. 

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