Se ainda bate um coração no peito dos leitores do Jornal de Negócios, bebam-me estas lágrimas. São as lágrimas da mãe de Joseph Cyr. É um dia de Outono de 1951 e que mãe não choraria ao ver o nome do seu filho desenhado num jornal, a letras generosas, contando como ele, Joseph Cyr, cirurgião, na insidiosa guerra da Coreia, a bordo de um destroyer canadiano, em pleno deck e o céu por testemunha, operara três norte-coreanos, um deles com uma bala a tricotar-lhe o coração, salvando-os da nefanda morte. Essa é a mais franciscana das nobrezas: salvar o próprio inimigo.
E eis que uma das lágrimas volta atrás e logo o olho maternal a engole. Um sobressalto exaspera a mãe de Cyr. O filho é cirurgião num hospital de Grand Falls. Que ela saiba o filho não tem o dom da ubiquidade, o que um urgente telefonema confirma. O Estado Maior canadiano alarma-se: tem um impostor a bordo. O comandante do destroyer recebe o telegrama acusatório: lê-o, amarfanha-o, deita-o para o lixo. Que repugnante mentira!
Joseph Cyr, mal chegara ao destroyer, tivera de extrair um dente cariado ao comandante, o que fez com perdulária dose de anestésico e a contento da autoridade máxima. Ficaram amigos. Discreto embora, o doutor Cyr era admirado por todos. Dava larga margem de manobra à equipa de enfermagem no tratamento dos ferimentos ligeiros, usava com liberalidade a penicilina se a complicação era mais funda e de tromba feia. Não seria por ele que o imperialista destroyer canadiano não navegaria, a atazanar o vermelho social-fascismo emergente na costa asiática.
É verdade: descia aos seus dignos aposentos e fechava-se, por suados e sufocados minutos, antes das cirurgias mais bárbaras. Assim fora com a cárie do almirante, assim foi com os estripados guerrilheiros coreanos que tentaram assaltar o navio. A tripulação, na descida do cirurgião aos seus infernos, via uma angustiazinha de Deus, imperiosa necessidade de concentração.
A realidade é como a mais crua das troikas e revelou haver em Cyr um insustentável déficit de verdade: o Dr. Cyr nem era doutor, nem era Joseph Cyr. Revestido de uma não excessiva e por isso simpática gordura, Ferdinand Waldo Demara era um adorável impostor e roubara as suas credenciais ao verdadeiro Dr. Cyr, tão vigilantemente amado por sua mãe.
W. Demara não tinha estudos médicos, mas tinha a mesma vocação heteronímica de Fernando Pessoa, fingindo deveras o que na verdade quisesse sentir. Fora, por umas semanas, varredor num hospital americano, vira o que vira: era esse o seu curriculum. Confiou na penicilina, na juventude e aptidão física dos pacientes e na pasmosa capacidade da sua memória visual, que era o que o levava a descer ao camarote para ler à velocidade de Usain Bolt os manuais clínicos de que se munira para a aventura. Depois valeu-lhe a audácia e uma divina dose de sorte.
A vida do impostor Demara é um rosário infindável de máscaras: era capaz de ser engenheiro como Álvaro de Campos, empregado de escritório como Bernardo Soares. Nasceu em 1921, foi várias vezes monge – trapista, uma vez, beneditino a outra –, psicólogo, engenheiro civil, adjunto de xerife, advogado, editor, desaparecido em combate, suicida com êxito, investigador do cancro. Tudo isto fingiu, tudo fez com mil nomes e credenciais forjadas, mas irrepreensíveis. Sempre que o descobriam e ia preso, corriam lágrimas. Deixava atrás de si amigos, admiradores convictos, pela competência e maravilhosos resultados com que exercera os cargos. Faltam-nos impostores com esta excelência.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.