Quem construiu o muro de Berlim?

É preciso gritar para corrigir a História. Quem construiu o muro de Berlim foi o cineasta Billy Wilder. Em 1961, no último estertor da Hollywood clássica, Wilder filmou One, Two, Three em Berlim e a vertiginosa velocidade das peripécias do filme forçou as pobres autoridades soviéticas – só podia, caro Jerónimo! – a proteger as cândidas almas germânicas dos cidadãos de Berlim Leste.

Resumindo o irresumível, eis a trama de One , Two, Three: um executivo da Coca-Cola, o actor James Cagney, fracassou numa missão de implantação da petulante bebida no Médio Oriente. Tem agora de se redimir conseguindo que a garrafinha sexy conquiste Moscovo.  Está já no maior ardor capitalista, quando recebe nova missão: cuidar, em Berlim, das férias da filha do patrão, 17 aninhos milionários, corpo de sereia sulista, cabecinha morangos com açúcar.  Um ser humano pré-Muro, já se vê.

O caos, todo o português sabe, tem braços. E vejam, os braços do caos tomam conta do filme e abraçam a menina milionária: ela apaixona-se por um jovem militante comunista de Berlim Leste. Eis o que o Muro, tivesse sido construído a tempo, teria evitado. Mas não, circulava-se entre as duas Berlins com uma liberdade que nem na IC19, e o casalinho, numa moto com sidecar a desbordar toneladas de CO2, extravasa de exaltação política ostentando balões com a palavra de ordem “Yankees Go Home”. James Cagney ainda tenta explicar à doce criatura que aquilo são actividades antiamericanas. “Por atacar os yankees?”, admira-se ela. “Do Sul, de onde venho, somos todos contra os yankees!” E o casalinho já pensa casar e ir viver para Moscovo, onde a utopia lhes promete duas assoalhadas não muito longe de uma casa de banho.

O hediondo capitalismo recorre aos velhos métodos. Corrompe o coração popular-democrático dos polícias de Leste, que prendem o genuíno revolucionário. Torturam-no, pondo-o a ouvir sessões contínuas da canção “Itsy Bitsy Teenie Weenie Yellow Polka Dot Bikini”. Nem a paciência de um Mário Centeno resistiria! Muito menos a do veemente jovem comunista: prefere confessar ser um espião da CIA à indigna tortura.

Mas o capitalismo, cuja morte científica está atestada e garantida, apesar das sucessivas e inúmeras mudanças de data de falecimento… o capitalismo, dizia, também tem os seus reveses: a rapariga está grávida. Ora, já se sabe que a versatilidade trafulha do capitalismo tanto mete a colher no tutu-de-feijão como no ensopadinho de abóbora, e já temos o capitalista da Coca-Cola a negociar o resgate do jovem comunista com três camaradas epicuristas, charutos havanos na boca soviética. James Cagney promete-lhes, se soltarem o rapaz, além de Coca-Cola, vender-lhes misseis em troca de havanos.

Talvez eu esteja a mentir: julgo que essa cena, Wilder a filmou na tarde de 13 de Agosto de 1961, perto da Porta de Brandeburgo. Quando voltou, no dia seguinte, e já não estou a mentir, ficou de olhos esgazeados. Pela calada da noite, céu cinzento, sob o astro mudo, as forças da utopia tinham construído um muro no meio do seu cenário. E o fumo dos charutos, da cena a que aludi, ainda conspurcava a ecológica lindeza do planeta, quando, em 1962, a proposta troca de misseis por havanos do homem da Coca-Cola de Billy Wilder teve tenebrosa e realíssima réplica em Cuba, mesmo à porta da casa dos yankees.

Wilder, a 13 de Agosto de 1961, agarrou nos actores e técnicos e zarpou para Munique, onde acabou One, Two, Three, a mais veloz comédia da história do cinema, que nem a tragédia de betão de um muro foi capaz de parar.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

One, Two, Three no Brasil é Cupido Não Tem Bandeira

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