Pesca à linha

Nesse tempo ainda se ia à pesca. Foi há menos de um século, começo dos anos 30, que o escritor William Faulkner e o realizador Howard Hawks foram à pesca. Leva­ram o actor Clark Gable. Gable não sabia que Faulkner era um escritor, mas cheirou-lhe a inte­lec­tual e perguntou quem eram os melho­res escri­to­res. “Hemingway, Willa Cather, Tho­mas Mann, John dos Pas­sos e eu” res­pon­deu Faulk­ner, incluindo-se, sem falsa modés­tia. Gable ficou de boca aberta: “Você escreve, Mr. Faulk­ner?” “Sim, Mr. Gable. E o senhor o que faz?”

Antes de conhe­cer Faulk­ner, Hawks lera um livro dele, Soldier’s Pay, e proclamou em Hollywood que des­co­brira o mais talen­toso escri­tor daquela geração. Quem conhe­cia a sua incli­na­ção para reconhecer talentos levou-o a sério e cor­reu às livrarias. Já Faulkner publicara um novo romance, O Som e a Fúria, obra-prima que con­fir­mava tudo. O nome do escritor começou a encher mais bocas do que as braised short ribs of beef do velho Musso & Frank Grill, o Gambrinus da Hollywood da época. E logo essa insaciável Hollywood o convidou. Aceitou e as vestais da literatura hão de sempre chorar a vil traição e achar que foi um desper­dí­cio, uma imo­ra­li­dade.

Outro escritor, Raymond Chandler, a quem quase tudo correu mal em Hollywood, se calhar por ter investido mais nos dry-martinis do que nas short ribs of beef, parece confirmar o tremor e temor dos moralistas: “Se os meus livros tivessem sido só um bocadinho piores eu nunca teria sido convidado para Hollywood. Se tivessem sido só um bocadinho melhores não teria precisado mesmo de vir.”

Não peçam arrependimento e ranger de dentes a Faulkner. Com o diáfano sentido prático de quem monta uma geringonça, Faulkner garantiu que “escre­ver por dinheiro não é pro­pri­a­mente pros­ti­tuir o talento, mas apenas encur­tar as fra­ses.”

Voltemos à pesca. A ami­zade de Hawks e Faulk­ner foi mais longa e bela do que a de Bogart e Claude Rains, em Casa­blanca. Não obstante, a colabora­ção deles não escapa a alguma artística ambi­guidade. Faulk­ner queria escrever com a téc­nica do cinema europeu experimental e van­guar­dista dos anos 20. Muita montagem, flash-backs, jus­ta­po­si­ção de rea­li­dade e fanta­sia. Mas Hawks explicou-lhe que talvez não valesse a pena o esforço, tendo em conta a tortura que ia dar, como realizador, ao que Faulkner escrevesse: “Espremo-te a histó­ria que é a primeira coisa que quero. A seguir, que­ro per­so­na­gens. Depois passo por cima de tudo o que tu pen­sas que tem inte­resse.”

Faulk­ner foi o escri­tor que mais bem resis­tiu a Holly­wood. Em Feve­reiro de 1949, a MGM pagou-lhe o que era então a milionária fortuna de 50 mil dóla­res pelos direi­tos de Intru­der in the Dust. O livro só tinha saído há um mês. Faulkner desatou a correr pela Sunset Street: “Tenho direito a embebedar-me e a dan­çar descalço.”

E falta-me falar, nesta crónica de pesca à linha, de outro pescador, Hemingway. Era também amigo de Hawks. Hemingway riu-se quando Hawks lhe disse que faria um bom filme do pior li­vro dele. “Qual é o meu pior livro?”, per­gun­tou. E Hawks: “Aquele pedaço de lixo cha­mado To Have and Have Not.” Hemingway concordou e apostou: “Nin­guém con­se­gue tirar um filme daquilo”. “OK – disse Hawks – arranjo o Faulk­ner para o reescrever. Seja como for, ele escreve melhor do que tu.”

O que terá sen­tido Hemingway? Ciúme ou lisonja? Ele e Faulk­ner admira­vam-se e temiam-se. Aposta feita, nasceu o filme. To Have and Have Not, obra-prima, é o filme pedaço de céu em que nasceu, de um assobio, o amor de Lauren Bacall e Humphrey Bogart.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

 

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