O Supremo Tribunal Federal volta a se debruçar nesta semana sobre a possibilidade da prisão após condenação em segunda instância, com argumentos de um lado e de outro baseados na acepção que cada um escolhe dar ao conceito do “trânsito em julgado”.
Independentemente do resultado – a previsão é de que o atual entendimento caia, com consequências nefastas para o país -, o debate escancara irracionalidades de fundo: o detalhismo perverso da Constituição de 1988 e a barafunda organizacional da Justiça brasileira, que, paquidérmica e lenta, privilegia a impunidade.
A definição de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória” é uma das 14 alíneas do Artigo 5º da Constituição de 1988 que trata diretamente de presos, sem contar outras tantas que abordam habeas corpus e situações especiais. Com tal nível de pormenores, que só seria cabível em leis ordinárias, não é de se espantar que a Carta abrigue confusões. Como a análise de evidências criminais não está nas atribuições dos tribunais superiores, deixa implícito que cabe à segunda instância o juízo final sobre as provas apresentadas pela acusação e defesa, portanto, fixa aqui o “trânsito em julgado”.
As demais contestações possíveis depois da condenação colegiada em segunda instância estão limitadas a questões processuais, de aplicação das normas do Direito e da Constituição. Muitas delas tecnicismos meramente protelatórios, facilitados pelo gigantismo da estrutura, com quatro instâncias, sem que se observe com rigor o que cabe a cada uma delas.
Resultado: duplicidade de funções, multiplicação de recursos em diferentes esferas, lentidão e prescrições em série em todas as instâncias, em especial nas superiores. Nesse rol estão, por exemplo, o ex-presidente José Sarney, que jamais chegou a ser julgado no STF pelo crime de corrupção, ou o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, cujo processo de lavagem de dinheiro caducou em setembro entre a 2ª Vara da Justiça Federal de São Paulo e o TRF3.
Com mais de 18 mil magistrados, 272 mil servidores e orçamento de R$ 93,7 bilhões, a Justiça se organiza em cinco grandes grupos – Estadual, Federal, Eleitoral, do Trabalho e Militar – todos eles com dois graus de jurisdição e um tribunal superior para cada tema – STJ, TSE, TST e STM -, além da Suprema Corte.
Em tese.
O caos é tamanho que casos de ladrão de galinha e furto de barras de chocolate em supermercado já foram parar no Supremo.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que monitora a velocidade de julgamento dos processos, só o estoque de pendências superou a casa dos 78 milhões em 2018. Isso em um cenário em que os casos novos (mais de 28 milhões) foi 1,9% menor do que em 2017, com os magistrados julgando 32,4 milhões de casos, 3% a mais do que no ano anterior.
No mínimo, os números mostram que o sistema é uma máquina de enxugar gelo que mesmo que multiplique sua capacidade de atendimento por 100 conseguirá fazer com que o cidadão veja Justiça no fim do túnel. Muito menos se o STF entender que a instância inicial e os Tribunais dos estados e regionais são apenas portas de entrada de um processo, sem gerar qualquer consequência para o condenado.=
Tudo isso para fixar uma regra de momento que, como bem disse o jornalista Merval Pereira, na sua coluna em O Globo, pode mudar novamente cada vez que um ministro do STF se aposentar.
Ao proibir a prisão depois da condenação em segunda instância ou mesmo legislar para que os casos se tornem transitados e julgados na terceira (STJ), como preconizam alguns dos ministros do STF, o Supremo poderá ir muito além de tumultuar a execução penal. Vai invadir competências do Congresso Nacional e cassar atribuições dos tribunais estaduais e regionais, além de jogar uma pá de cal na credibilidade dessa jurisdição.
E, claro, sinalizar o quanto o crime compensa, pavimentando o caminho para que os mais abastados usem e abusem das possibilidades infinitas de recursos nas instâncias superiores. Livres, leves e soltos.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 20/10/2019.