O paraíso

Tive um vislumbre do que é o paraíso. Tinha vinte anos, uma das melhores idades para se ver o paraíso, e a primeira coisa que descobri foi que, no paraíso, Deus primava pelo absentismo. Não estava lá.

Não fui o único. Em verdade vos digo, tudo se passou numa noite de copos, antecâmara do paraíso, tanto mais que já era, nesse ano de 1975, na Luanda lagarta em metamorfose, minuciosamente difícil encontrar copos. Com argúcia científica e o faro dos predestinados, dois amigos meus tinham levado o velho Volkswagen negro de tasco clandestino em tasco clandestino, bebendo em bares sombrios os geladíssimos finos que abrem portas à fina areia da eternidade.

A cidade de Luanda era um caos: paradisíaca e deliciosa ausência de lei a beijar os lábios da semi-anarquia. Os meus amigos a que, para salvaguarda da sua fortuna e bom nome, chamarei Simão e Mário, regressavam à Vila Alice, nosso bairro, paraíso instalado entre dois promontórios, albergando em simétrica oposição dois figadais inimigos, o MPLA e a FNLA.

Conduzia o Simão e deixou o Mário na poética rua Eugénio de Castro. O Mário já abria o portão do quintal, quando, do nada, como só no paraíso acontece, viu emergir, à frente do velho carocha, metralhadora na mão, um jovem combatente, anjo ou semi-deus negro. “Komé Kamarada – disse ele, com os k todos, ao meu amigo Simão – tens de me levar no bairro Pica-Pau.” A metralhadora apontava, com celestial negligência, à cabeça do Simão, o que se deve entender mais como distracção do que como ameaça. Parlamentou-se. O Simão invocou mil perigos e as patrulhas na Estrada de Catete por onde teriam de passar. “E como é que o camarada se chama?”, rematou, com espírito conciliatório, a bonomia de um arcanjo bem bebido.

O camarada chamava-se Sempre Fixe, juvenilíssimo rosto resplandecente e suado, numa exaltação de quem acabou ler de uma assentada as incendiadas páginas do “Marriage of Heaven and Hell”, de William Blake. Por outras palavras, uma ganza como a minha mãe, Alice Fonseca, nunca me viu.

Já o solidário Mário voltara ao carro. Entrou para o banco traseiro, Sempre Fixe no da frente, metralhadora apontada ao condutor. E arrancam, quase três amigos, como se se conhecessem há 500 anos. “Komé Kamarada, vira só então a metralhadora para lá, pode ser?” Sempre Fixe, com calma seráfica, mete o dedo no cano e carrega no gatilho. “Não tem bala, isso não dispara já. Vamos no Pica-Pau buscar munição.”

E eis, ao longe, a primeira patrulha. “kamarada, acelera, então, não pára, não pára.” Pé no acelerador, o Simão passa pela patrulha portuguesa na 7ª esquadra, numa bisga olímpica, jamaicana. Talvez não fosse, de tão negro, um carro, terão pensado os soldados portugueses, a remoer saudades e um apropriado je m’en fiche, se esta fosse uma crónica francesa.

Nem um tiro, embrenham-se na poeira do musseque e já estão no centro do Pica-Pau, o Sempre em Fixe a saltar do carro e recomendação de mil cuidados, que no paraíso os amigos são mesmo para as ocasiões: “Vai já, camarada, vai já, aqui é perigoso. Tem cuidado.”

O salvífico Volkswagen, a respirar heroísmo, voltou a passar sem parar pela patrulha portuguesa, ainda a esfregar os olhos e Simão regressa ao paraíso doméstico, com a amada a dizer-lhe: “Onde andaste? Houve aqui duas horas de tiroteio.” Só então o meu amigo percebeu onde é que Sempre Fixe esgotara as munições. E percebeu também que escaparia sempre, incólume, a todos os tiroteios. Como se um Messias lhe dissesse: “Em verdade te digo, estarás comigo no paraíso.”

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

Foto de Joaquim Lopo, com a devida vénia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *