O descanso eterno dos ricos

A esmagadora maioria dos ricos só sabe fazer de ricos. Atrevo-me a dizer: mesmo os que um dia já foram pobres. E perdoem-me se não falo aqui do riso de Berardo. Já não há nele, no seu soletrado riso, cordão umbilical que o ligue à ancestral humildade, à genuína humanidade do pobre. Eis o que interessa, há um rico que ficou rico a fazer de pobre: Charlie Chaplin.

Quando Hollywood o descobriu, a fazer sketches num teatro de Nova Iorque, um especialista, que nem de lhe engraxar os sapatos era digno, quis mudar-lhe as largas calças rotas, os sapatos sem solas, o bigodinho de miséria, o extravagante chapéu de coco. Quis apagar o vagabundo pobre e fazer do tramp, que Chaplin era, o trump que talvez o futuro viesse a parir. Fiel ao seu vagabundo, Chaplin não deixou que o nome do especialista ficasse para a História.

Púnhamo-nos de acordo: Chaplin fez uma fortuna obscena. Pior ainda, fez uma fortuna suíça, plácida pátria que o recebeu e onde criou os filhos. Mais propriamente em Corsier-sur-Vevey, comuna onde um dia, pela calada da noite, seja-me perdoado o trocadilho, o raptaram. Levaram Chaplin e os raptores logo telefonaram aos filhos pedindo o ofensivo resgate de 600 mil francos suíços, uma frivolidade de pobre, claro está. Mesmo em 1978, ano desse rapto, se fosse eu a gazofilar Chaplin, teria pedido uns dez milhões. Outros congeminariam uma parceria público privada, outros uma fundação dedicada às artes, mas é isso mesmo, cada um sabe de si.

Ora, quem é que os facínoras tinham raptado, pergunta-me o criterioso leitor: o Chaplin rico ou o Chaplin vagabundo, esse nosso bem-aventurado Charlot? E eu, em boa verdade, tenho de confessar: nem um, nem outro. Os noctívagos assaltantes tinham raptado o cadáver de Chaplin. Em campa rasa, no meio das centenas de campas sóbrias do cemitério de Corsier-sur-Vevey, os filhos tinham enterrado Chaplin, no fim de Dezembro de 1977. E sorriam: Chaplin, com o seu maravilhoso humor judeu, deixou-se morrer na manhã do dia de Natal.

Um rapaz polaco, que quase podia ser da minha criação, vê pela televisão, em Lausana, as cerimónias fúnebres. Concebe então o tétrico plano. Convence um búlgaro meio retardado e, dois meses depois, já passava da meia-noite, no sepulcral silêncio de Corsier-sur-Vevey, deambulam entre as campas até apalparem a de Chaplin. Cavam e retiram o caixão, levando com eles o corpo bailarino do actor de Tempos Modernos.

Durante dois meses e meio eram as polícias europeias num desatino e as teorias da conspiração a germinar: que tinham sido os neo-nazis a vingarem-se de O Grande Ditador; que foram os nacionalistas ingleses pró-Brexit avant la lettre a querer tirar do Continente o ostracizado corpo do compatriota; que eram os integristas católicos a expurgar do cemitério sagrado o corpo do judeu; que era um bando de extrema-esquerda a excluir o ocioso rico devolvendo a terra a quem a trabalha.

De caixão nas mãos, o raptor polaco estava, entretanto, encalacrado. Os filhos de Chaplin deram-lhe uma nega. Chaplin aceitou mudar um milímetro que fosse a sua personagem de vagabundo? Assim os filhos aceitaram pagar! Já o polaco, em desespero, baixara para 150 mil os francos suíços. Telefonava todos os santos dias. Tanto que a polícia o apanhou de lábios no bocal. Prenderam-no e ao boçal búlgaro, resgatando o caixão, escondido a um passo do lago de Genebra.

Foi o último gag de Chaplin. Para que o não repita, puseram em cima do seu descanso eterno um esmagador paralelepípedo de cimento. O vagabundo não voltará a fugir.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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