Ná Ozzetti escolheu o Sesc Pompéia para apresentar, em duas noites, as de sábado, 9, e domingo, 10 de fevereiro, o show em que comemora 40 anos de carreira. Não poderia mesmo ser outro lugar: Ná Ozzetti e o teatro do Sesc Pompéia combinam perfeitamente, como feijão com arroz, goiabada e queijo.
O show é sensacional, maravilhoso, arrebatador, daqueles que fazem você sair alegre, feliz da vida, com os pés a alguns milímetros do solo, até achando que talvez a humanidade não seja assim uma invenção que não deu certo. Falo um pouco do show em si mais adiante, mas primeiro queria falar do lugar e do tempo.
Ná fala pouco em seus shows. Não é do tipo de artista que adora conversar com o público, tipo Caetano e Gil. Ela mesma disse, ao final de uma das suas poucas durante o show do domingo, que não gosta muito de falar – e logo começou mais uma música. Mas, mesmo falando pouco, fez questão de dizer que estava feliz e emocionada por comemorar os 40 anos de palco exatamente ali, onde fez vários shows quando era do grupo Rumo, e onde lançou seu primeiro disco solo, Ná Ozzetti, em 1988, pela gravadora Continental. (O disco foi relançado em CD em 2006, pela Warner.)
Foi nos shows no Sesc Pompéia em junho de 1991 que foi gravado o álbum Rumo ao Vivo, lançado no ano seguinte pela Camerati Discos – o último antes da dissolução do grupo. E foi também no Sesc Pompéia que os integrantes do então já desfeito Rumo se reuniram para alguns shows de puro prazer de reencontro, em 2000 ou 2001, não tenho bem certeza.
Mas o fato é que o lugar certo para um show pelos 40 anos de carreira de Ná Ozzetti tinha mesmo que ser o Sesc Pompéia.
Eu não sabia disso, mas o fato é que Ná considera 1979 como o marco do início da sua carreira. Certamente, então, foi naquele ano que ela estreou com o Rumo no palco, talvez em algum lugar na USP, onde todos estudavam. Segundo a maravilhosa segunda edição da Enciclopédia da Música Brasileira, os primeiros membros do Rumo a ouviram cantar numa praia de Paraty em 1978, e a convidaram para entrar no grupo.
O Rumo estreou em disco em meados de 1981 – e com o lançamento de dois álbuns simultaneamente, Rumo e Rumo aos Antigos, um só com canções compostas por membros do conjunto e o outro com grandes clássicos menos conhecidos de Noel Rosa, Sinhô, Lamartine Babo.
Foi naquele ano de 1981 que vi Ná Ozzetti pela primeira vez, no meio daquele monte de gente que formava o Rumo – eram dez integrantes, oito homens, duas mulheres, ela e Ciça Tuccori –, no Teatro Lira Paulistana, um lugar que deveria ter sido tombado pelo Patrimônio Histórico municipal, estadual, federal, pela Unesco, mas que, como é brasileiro, foi tombado no outro sentido, o mais físico, e não existe mais.
Ná era uma garotinha atraente, com cabelos longos e aqueles olhos claros grandes, expressivos. Tinha 22 aninhos a gatinha – faria 23 em dezembro, pouco antes de participar de duas noites-evento, dois shows que reuniram no hoje também desaparecido Teatro Bandeirantes, na Brigadeiro Luiz Antônio, toda a fina flor da “vanguarda paulista”, o próprio Rumo, Itamar Assumpção, o Premeditando o Breque e Arrigo Barnabé. Juntar apresentações de todos seria impossível no minúsculo espaço do Lira Paulistana, onde eles surgiram.
Em 1981 eu começava minha breve carreira como crítico de música no Jornal da Tarde, na época um jornal importante, reconhecido, cultuado – e fui eu que escrevi sobre os dois discos que o Rumo lançou ao mesmo tempo. Para artistas consagrados, crítica de jornal, mesmo os mais importantes, não significa muita coisa, mas para conjunto novo, para quem está começando, é algo que conta muito, que marca. Tanto que a página do Jornal da Tarde com meu texto estava exposta junto do teatro do Sesc Pompéia, no meio fe uma memorábilia do grupo – capas de discos, cartazes, ingressos de espetáculos – naqueles shows de reunião, de reencontro, em 2000 ou 2001.
No meu texto, me referi apenas a Ná, sem citar o sobrenome. Quando o publiquei aqui no site, em 2009, acrescentei, no pé do comentário “A historinha por trás do texto”, o seguinte:
“Por que será que, ao fazer o texto, não botei o nome inteiro da Ná Ozzetti? Vai saber… Em 1981, será que alguém, além do pessoal do Rumo, já sabia que Ná iria ser uma das melhores cantoras do Brasil?”
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No show pelos 40 anos de carreira, Ná deu uma passeada pelo repertório de seus vários discos pós-Rumo, os solo ou em parcerias (com Zé Miguel Wisnik, André Mehmari, Passo Torto). Logo de cara arrasou com “A velha fiando” (Dante Ozzetti-Luiz Tatit), uma canção do disco Meu Quintal, de 2011, dificílima, melodia sinuosa, versos densos – “Bandos de insetos inquietos / Invadem os campos / Devastam a cultura / Mas são devorados / Por sapos gulosos / Só sobra uma mosca / Que pousa na velha / E a velha fiando”,
Desde os shows no pequeno Lira Paulistana Ná tem essa voz maravilhosa, possante, potente, maleável, maleabilíssima – mas agora, aos 60 anos, ela parece estar no auge do seu talento, no domínio da voz, como bem disse e repetiu a Mary. Faz com a voz o que quer, o que bem entende – é uma maravilha, e a platéia do Sesc Pompéia, pequena (só foi aberta uma das metades do teatro) mas fidelíssima, aplaudia cada canção em absoluto delírio.
E Ná conseguiu uma proeza: tem se acompanhado pelos mesmos músicos ao longo dos dez últimos anos. E que músicos! Dante Ozzetti, o irmão compositor e virtuoso violonista, ao violão e na direção musical. Mário Manga, o extraordinário Mário Manga que foi do velho e ótimo Premê, guitarra e violoncelo. Sérgio Reze, na bateria e gongos. Zé Alexandre Carvalho, no contrabaixo acústico. E Fernando Sagawa, o mais novo da turma, o mascote, como ela o chama, no sax tenor, sax soprano, flauta e teclados.
Quatro músicos feras, experientes, veteranos, mais um jovem e talentoso multi-instrumentista, que têm tocado juntos nos shows e nos discos de Ná – tudo absolutamente entrosado, tudo perfeito.
Esse time de craques, essa seleção maravilhosa passou por “Crápula”, “Estopim” (as duas de Dante Ozzetti-Luiz Tatit), “Você se foi” (Ná Ozzetti-Itamar Assumpção), “Os enfeites de cunhã” (Ná Ozzetti-Joãozinho Gomes), “Capitu” (Luiz Tatit), “Show” (Luiz Tatit-Fábio Tagliaferri”. “Show” é aquela feita especialmwente para Ná cantar em um festival da Rede Globo, deliciosa, o melhor presente que Tatit poderia dar para a amiga, cuja letra diz:”Pode não ser um mega show / Um festval com multidões / Mas quem chorou / Já tem na voz / Um show”.
Pérolas, pérolas. Como são maravilhosas essas músicas do pessoal da “vanguarda paulista”. Como são sensacionais, geniais, inventivas, inteligentes, irônicas, bem humoradas as letras de Luiz Tatit, de Zé Miguel Wisnik.
Não me lembrava de “Lizete”, mas Mary e eu nos deliciamos com a letra, Luiz Tatit puro: “Mãe, Lizete tá bem alterada / Não acha graça mais em nada / Não acredita mais no amor, cansou / O amor não tem uma receita certa / Não é uma estrada reta / Tem seus espinhos e fulô”.
E depois: “Mãe, vou me juntar com a Lizete / Mudar pra sua quitinete / Ali no bairro do Limão / Então, nós duas / Ouvindo disco na vitrola / De Charles Mingus a Cartola / Do jeito que você falou, mamãe”.
Foi só em casa, agora, ao tentar fazer este texto que está demorando para sair, que vi que “Lizete”, o mais puro Luiz Tatit, o mais perfeito Rumo que pode haver, que está no disco Embalar, de 2013, é de Kiko Dinucci-Jonathan Silva.
O Rumo deu cria! Que maravilha isso!
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Ná passeou também pelo repertório de Carmen Miranda, as canções dos grandes mestres lá dos anos 30, 40. Numa de suas falas, citou o início do Rumo, a pesquisa por músicas dos antigos, a descoberta das velhas pérolas – e confessou que Carmen Miranda foi sua grande influência.
Dos mestres antigos, cantou “No Rancho Fundo” (Lamartine Babo-Ary Barroso), “Camisa listada” (Assis Valente), “Adeus Batucada (Synval Silva) e “A preta do acarajé” (Dorival Caymmi.
Ná cantando os mestres antigos é de morrer, é de matar, é de flutuar. Maravilha pura, meu Deus do céu e da terra.
Obrigado, Ná!
11/2/2019
Fotos de Mary Zaidan.
Da esquerda para a direita: Dante Ozzetti, Fernando Swegawa, Mário Manga, Ná, Sérgio Reze e Zé Alexandre Carvalho.