Leis demais em um país sem lei

É sempre igual. Todas as vezes que o Brasil chora mortes em tragédias que poderiam ser evitadas ou pelo menos minimizadas por ação mais eficiente do Estado, cobram-se leis mais duras com punições mais severas para os responsáveis.

Foi assim na boate Kiss, na barragem de Mariana e, agora, em Brumadinho. Como se leis resolvessem alguma coisa em um país que tem leis demais e fiscalização quase nula do cumprimento delas.

Levantamento feito há 12 anos pela Casa Civil da Presidência da República, o último de que se tem notícia, dava conta da existência de 181 mil leis federais, estaduais e municipais. Outro, informal, publicado no Consultor Jurídico (Conjur) em 2017, fala em nada menos do que 10 milhões de leis, normas, decretos, portarias e regulamentos nas três esferas.

É lei que não acaba mais para uma terra que parece sem lei ou em que, na melhor das hipóteses, reina a lei do mais forte.

Há leis para tudo. Na área penal, acrescenta-se à extensa legislação o requinte de considerar hediondos vários dos crime cometidos, algo que deveria fazer diferença, impedindo o culpado de benefícios como anistia e indulto. Mas qual o quê. Para fazer frente aos clamores diante da disparada incontrolável da criminalidade e ganhar pontos com o eleitorado, parlamentares enfiaram todo tipo de delito nessa categoria – homicídio qualificado, extorsão, estupro e mais uma dezena crimes, até corrupção -, sem qualquer consequência.

Corruptos condenados trocam o inafiançável por tornozeleiras eletrônicas e se deliciam em seus lares, não raro luxuosíssimos. Assassinos nem mesmo são encontrados.

A pouquíssima valia dessa enormidade de leis se desnuda diante dos números da segurança pública. De pouco servem as leis se apenas 8 em cada 100 homicídios são elucidados. Isso em um país que somou mais de 60 mil assassinados em apenas um ano, estatística que o coloca entre os mais violentos do mundo. Menos ainda quando dados confessos do Ministério da Justiça, agora sob a batuta do ex-juiz Sérgio Moro, apontam que os julgamentos dos acusados duram em média mais de 10 anos. Ou seja, 92% dos assassinos não são descobertos e, quando são, levam mais de uma década para ouvir a sentença de condenação.

Depois dos 19 mortos do rompimento da barragem da Vale em Mariana, não foram poucas as iniciativas para endurecer as leis sobre mineração. Nenhuma delas foi aprovada, o que, a rigor, é absurdo. Mas mesmo que fossem fica a pergunta: que serventia teriam diante da tragédia de Brumadinho quando existem apenas 35 fiscais públicos para atestar a segurança de 790 barragens de rejeitos de minério?

Há muito o Estado brasileiro faliu. E não será remendado por mais leis. Se é fato que o país necessita de reformas constitucionais como as da Previdência e tributária para livrá-lo da derrocada financeira, precisa ir muito além delas para dar respostas mínimas ao cidadão. Tem de fazer valer a lei. E para todos.

Não é tarefa fácil para um governo que chegou cheio do gás da mudança e se viu enredado com a suspeição de “malfeitos” do filho do presidente da República. Ou para uma Casa de leis que inaugura seu ano legislativo desrespeitando leis, como ocorreu no lastimável episódio da eleição da Presidência do Senado.

Modernizar a legislação, jogar fora boa parte dela, livrar-se de normatizações excessivas são demandas obrigatórias. Mas, antes de tudo, o país tem de consolidar o princípio de que lei existe para ser cumprida, algo que só terá consequência se o Estado se coçar, der um cavalo de pau e passar a servir ao público em geral, não aos donos da vez. Os titulares do poder, velhos e novos, incluindo os Bolsonaros, o presidente e os seus, têm a obrigação de saber disso.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 3/2/2019.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *