Ele era a antítese de Marilyn Monroe. E repare-se, nem sequer estou a falar de beleza, mas só da insignificância a que chamamos confiança em si mesmo. A confiança de Carlos Kaiser em si mesmo esgotaria a lotação de qualquer estádio. Mesmo a do Maracanã.
Kaiser e Marilyn tinham em comum o mesmo ardor, amavam incendiadamente o que faziam: ela, o cinema; ele, o futebol. Separava-os um rubicão de talento. Damos o nome de Marilyn a esse sumptuoso revestimento humano pelo qual vadiava a erotíssima personagem que, mal lhe punham uma câmara à frente, florescia e irradiava. Sem a câmara Marilyn era um rio de descrença. Vejam o dia em que o futuro marido, o escritor Arthur Miller, a leva a conhecer a mãe, moradora num estreito T1 de Brooklyn. Marilyn quer agradar, multiplica sorrisos, delicadezas, força-se a ser perfeita, já bebeu um litro de chá. Precisa de ir à casa de banho, separado da sala por um magro tabique. Teme soltar algum ruído impertinente. Abre, por isso, todas as torneiras e faz o que liquidamente tem a fazer. No dia seguinte, Miller telefona à mãe: “Então o que achaste dela?” “É encantadora – diz a mãe – é um anjo. Mas mija como um cavalo!”
Foi a fusão dela com essa câmara amorosa que sentou Marilyn no colo de milhões de cinéfilos, até no meu inquieto colo português. A bola é a câmara do futebol. Entre a bola e os pés, cabeça, cintura, pernas de Pelé, de Maradona, de Eusébio, agora Messi, amanhã João Félix, há uma alquimia comovente: o inteiro estádio vê e soluça, corre uma lágrima de êxtase mesmo no olho do mais empedernido torcedor. Carlos Raposo, nascido em Porto Alegre, não tinha um grão da estranha alquimia dos deuses atrás citados, mas tinha, num arrebatamento de Fernando Pessoa, a ousadia do fingimento.
Não interessa quando Kaiser começou a fingir. Interessa que tinha a estampa e a personalidade de um Beckenbauer, a quem roubou o cognome, e interessa que fingia tão completamente que era futebol a dor que sentia, que o futebol deveras começou a sentir como suas as dores dele.
Explico-me: Carlos Kaiser fez uma divina carreira de futebolista sem nunca ter jogado um único jogo de futebol. Um. Unzinho. Contratou-o o Botafogo, o Bangu, tanto o Fla como o Flu. Mesmo o Vasco da Gama. Ou seja, a elite dos clubes do Rio de Janeiro. Kaiser firmou com cada um destes clubes um contrato de craque. Sempre contratos de curta duração. Chegava, como agora Mattia Perin, já lesionado. Ou com infecção e atestado médico do seu dentista.
Mas tinha o que tinha o Pacheco, se se lembram da personagem do Fradique de Eça. O Pacheco tinha essa calva e pensativa inteligência de quem se senta na primeira fila e nem precisa de abrir a boca. Kaiser alegrava um balneário e exsudava perfume de driblador, um riso que era promessa de assistências e golos que humilhariam o adversário.
Quando o calado Pacheco morreu, Portugal celebrou-o descobrindo atónito que ele nunca fizera nada, o dedo mindinho de um discurso que fosse. O invisível, mas imenso talento de Kaiser estabeleceu uma reputação a que se rendeu o resto do mundo: foi jogador no México, Estados Unidos, em França, até no nosso Louletano. Em lugar algum fez um jogo sequer, mas isso são minudências com que se distraem espíritos mesquinhos e invejosos.
Um dia, no Bangu, o presidente deu, da bancada, ordem ao treinador para o meter. Kaiser, em pânico, vai aquecer. Provoca os espectadores com a sua cabeleira de Marilyn. Chamam-lhe Lili ou coisa assim. Kaiser atira-se a eles. Foi expulso, sem ter entrado em campo.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.